“Atan gran sabor avia daquel cant’ e daquel lais,
que grandes trezentos anos estevo assi, ou mays,
cuidando que non estevera senon pouco, com’ está”
Afonso X “O Sábio”, ‘Cantigas de Santa Maria’.
Conta uma das Cantigas de Santa Maria dedicada à lenda de Dom Ero, o abade de Armenteira, que implorava constantemente à Nossa Senhora para que lhe mostrasse um vislumbre de como era o Paraíso. Um dia Dom Ero ficou em êxtase ouvindo cantar uma ave num bosque próximo ao mosteiro. Quando saiu deste transe, tinham passado três longos séculos. A graça tinha sido concedida.
Na clausura, quase monacal, imposta pola pandemia do Covid-19, não foram poucas as pessoas que se recrearam nos tempos mortos na observação dos pássaros que da sua janela se viam. Muita gente até nunca tinha reparado no colorido e diversidade da ornitofauna de um habitat tão desnaturado como o urbano.
Mas, sim, para gozo dos nossos olhos lá estavam pardais, pombos, rolas, estorninhos, andorinhões, gaivotas, rabirruivos, melros, tordos, chapins, papuxas, felosas, piscos, lavandeiras, pintassilgos, chamarizes, pegas, falcões-peregrinos…
Porque, para além do duro asfalto, dos blocos de prédios e da poluição, as urbes também apresentam vantagens evidentes para as aves:
- Abrigo, visto que são ilhas de calor, com temperaturas mais elevadas, até em vários graus.
- Proteção, ao diminuir o número de predadores. E isto apesar do perigo que representam os gatos vadios…
- Menos venenos do que no campo, onde impera uma agricultura intensiva que dizima as populações de invertebrados polo uso e abuso de substâncias tóxicas pesticidas.
- Fartura de água (em fontes, tanques…) e alimento (que vai desde ao costume de alimentar pombos e patos aos aterros sanitários).
Não nos chegaria a brevidade deste artigo para descrever toda a variedade de aves que podemos encontrar nas nossas cidades. Falaremos apenas de algumas das espécies que consideramos mais comuns e emblemáticas desse meio.
E quando pensamos em pássaros de cidade, o pardal-comum (Passer domesticus) é o primeiro nome que nos vem à cabeça. Originário do Oriente Médio, o pardal está agora distribuído por todos os continentes, sendo, talvez, o passarinho mais abundante e conhecido do planeta, embora nos últimos tempos esteja a sofrer um forte decrescimento nas suas populações, por causas que ainda não foram completamente esclarecidas. Tão fortemente ligados estão os pardais às atividades humanas, que se extinguem quando desaparece a nossa presença no território.
O pardal é um caso claro de comensalismo, fenómeno habitual entre muitas das aves urbanas. O comensalismo consiste numa relação ecológica interespecífica que se estabelece entre duas espécies, em que uma delas (o pardal) tira partido da outra (o ser humano), sem a afetar em grau considerável. Às espécies que, como os pardais, colonizam os ecosistemas antropizados denominamo-las sinantrópicas.
O pardal é um caso claro de comensalismo, que consiste numa relação ecológica interespecífica que se estabelece entre duas espécies, em que uma delas (o pardal) tira partido da outra (o ser humano
E outro bom exemplo de espécie sinantrópica e comensalista são os pombos-comuns (Columba livia var. domestica). A variedade doméstica dos escassos e hibridados pombos-das-rochas tem-se convertido muitas vezes numa praga que pode originar problemas higiénico-sanitários e deterioração em monumentos, devido à abundância e acidez dos seus excrementos. Misturados com estes, muito frequentemente observamos em parques e jardins as rolas-turcas (Streptopelia decaocto), um tipo de rola que chegou ao nosso país na década de 70 do século passado (a primeira citação é de Ferrol em 73), após a sua expansão por toda a Europa, procedente dos Balcãs.
Para além de aves tão tipicamente de cidade, como as anteriores, há outras como os estorninhos que alternam a vida rural com a urbana. A contemplação, durante as tardes de inverno, dos bandos de estorninhos, que chegam às povoações para pernoitarem, constitui um dos mais belos espetáculos que a natureza nos pode oferecer. Milhares de aves cobrem os céus, executando voos sincronizados que nos deixam de boca aberta. Estorninhos-malhados (Sturnus vulgaris) e estorninhos-pretos (Sturnus unicolor) procuram nas árvores dos parques um dormitório agradável e seguro para passarem a noite. Porém os dejetos e o barulho nocturno originado por estas concentrações de estorninhos nem sempre agradam os vizinhos.
Na primavera e no verão, os andorinhões-pretos (Apus apus) adornam os céus citadinos com os seus elegantes voos planados a grande altura. Os andorinhões possuem um corpo aerodinâmico, relativamente pequeno, e uma grande envergadura de asas, o que lhes permite aproveitar as correntes térmicas atmosféricas e, assim, poderem passar a maior parte da sua vida no ar, onde se alimentam, dormem e até copulam.
Uma ave que se expandiu como nidificante em telhados dos prédios do litoral, a partir dos inícios da década de oitenta, foi a gaivota-de-patas-amarelas (Larus michahaellis). No início, este aumento associou-se com os aterros sanitários do lixo, em que as gaivotas obtinham sustento sem grande esforço. As gaivotas têm grande capacidade de adaptação e todo o mundo sabe do seu carácter intrépido, que até as leva a roubar os petiscos das mesas das esplanadas.
A contemplação, durante as tardes de inverno, dos bandos de estorninhos, que chegam às povoações para pernoitarem, constitui um dos mais belos espetáculos que a natureza nos pode oferecer
Existem muitas outras aves que se acomodam a viver em áreas habitadas, mesmo que este não seja o seu habitat típico. Espécies como o rabirruivo-preto (Phoenicurus ochruros) que troca, sem problema, as paisagens rochosas, por qualquer tipo de construções, onde se distingue facilmente polo seu comportamento trêmulo e uma cauda de cor laranja, que contrasta com o corpo negro dos machos. Ou como os melros (Turdus merula) e tordos-comuns (Turdus philomelos), que ocupam amiúde terrenos ajardinados, sendo próprios de zonas arborizadas e arbustivas.
Este confinamento aproximou-nos duma vida conventual, levando-nos a procurar a felicidade nas pequenas cousas da vida quotidiana. E como não ficar cativado, qual Dom Ero, com a musicalidade sublime, celestial, do canto dum melro ou dum tordo ao cair da tarde? Mas cuidado ao acordar!