O incremento da transcendência da atuaçom policial no processo penal e a consequente submissom da funçom jurisdicional à lógica e aos métodos policiais, com as suas técnicas inquisitivas de suspeita e com a sua parcialidade, é um fenómeno moderno e mui preocupante já que afeta a valores constitucionais como a imprescindível imparcialidade judicial, o direito de defesa e o correto exercício de direitos fundamentais.
Seguindo o magistrado Ramón Sáez Valcárcel, concretamente o seu artigo “Pericia de inteligencia: prueba penal y erudición de Estado”, publicado em março de 2017 no número 88 da Revista de Jueces para la Democracia, diremos que as agências policiais (e os serviços secretos) livram umha luita contra a delinquência e os criminais que leva a considerar o suspeito como inimigo e o processo como um meio para confirmar a sua culpabilidade. O trabalho policial é arbitrário e seletivo, guia-se polo pragmatismo e está condicionado pola necessidade de previr o perigo e por isso o seu método de trabalho é a suspeita. E dado que a suspicácia carece de limites, porque é umha questom subjetiva, o ánimo dos que tenhem que desconfiar profissionalmente para previr as ameaças alimenta-se, necessariamente, de componentes paranoides.
Por contra, os juízes trabalham com hipóteses sobre feitos e tratam com sujeitos imputados, e nom existem inimigos nem suspeitos cuja culpabilidade deva ser verificada. A sua atuaçom deve respeitar a presunçom de inocência, nom apenas como regra de juízo senom tamém como critério de tratamento, e tenhem a obriga, tal como o Ministério Fiscal, de “consignar y apreciar” também as circunstáncias favoráveis ao investigado (artigo 2 da Ley de Enjuiciamiento Civil).
As agências policiais (e os serviços secretos) livram umha luita contra a delinquência e os criminais que leva a considerar o suspeito como inimigo e o processo como um meio para confirmar a sua culpabilidade
Umha das realidades em que cristaliza este aumento da preponderáncia policial no nosso processo som os conhecidos como “relatórios periciais de inteligência”, que Sáez Valcárcel no artigo mencionado define como umha ferramenta de trabalho próprio das agências de informaçom encarregadas de prover ao governo de conhecimento sobre “as ameaças e perigos, atuais e potenciais, presentes e, sobretodo, futuros”. Mui significativamente, noutra passagem do artigo, o mesmo magistrado refere que estes relatórios se servem de técnicas de análise e de prediçom próprias das organizaçons militares e que, em última fase, respondem “à lógica de guerra e à cultura da suspeita”.
Nesse sentido, a informaçom de inteligência foi sempre um saber cujo compêndio e preparaçom estava destinado ao consumo da autoridade chamada a decidir umha matéria da área competencial do executivo e das administraçons, entre as quais cumpre destacar o mando militar. Trataria-se, segundo Sáez Valcárcel, de um “destilado da razom de estado em cujos domínios medrou”, polo qual a sua penetraçom na atividade judicial deve ser considerada como umha “rareza”.
A utilizaçom deste tipo de relatórios policiais alcançou o seu paroxismo na repressom do independentismo radical galego onde foi posta em prática umha nova habilidade: a criaçom da própria ameaça. Com efeito, a mesma existência dumha organizaçom terrorista denominada Resistência Galega está baseada exclusivamente em afirmaçons contidas em relatórios de inteligência, achegados ao Sumário 2/2012 do Julgado Central de Instruçom nº 6 da Audiência Nacional. Como sabemos, este sumário foi recentemente reativado contra quatro pessoas pola sua suposta integraçom numha banda armada que carece de ato fundacional, nom tem militantes, nem hierarquia, nem estrutura económica e que nem sequer reivindica açons.
E som também relatórios de inteligência os que servem de base única à acusaçom formulada contra as associaçons Ceivar e Causa Galega e doze pessoas nas Diligências Prévias nº 120/2015, também do Julgado Central de Instruçom nº 6 da Audiência Nacional, que as considera organizaçons criminais dedicadas à apologia do terrorismo de Resistência Galega, fechando-se assim o círculo vicioso.
O ânimo de quem tenhem que desconfiar profissionalmente para previr as ameaças alimenta-se, necessariamente, de componentes paranoides
Os efeitos destas técnicas transcendem o próprio processo, pois além do dano que geram no direito à presunçom de inocência e nas garantias processais daqueles que vem ameaçada a sua liberdade polas penas solicitadas, provocam desalento no exercício dos direitos fundamentais à liberdade de expressom, associaçom e participaçom política, devastando a qualidade da democracia.
A doutrina do efeito desalento constitue umha manifestaçom da dimensom objetiva dos direitos fundamentais (ver sentença do Tribunal Constitucional 88/2003, de 19 de maio), que obriga os poderes públicos a remover os obstáculos que desincentivem os cidadáns para o exercício dos seus direitos fundamentais. Além disso, umha sançom penal excessiva sobre umha conduta próxima do exercício dum direito fundamental pode dissuadir os cidadáns de exercer no futuro esse direito e, nesse caso, a sançom desproporcionada constitue umha vulneraçom do próprio direito fundamental.