‘Pílulas críticas arredor da Covid-19’ é um projeto do coletivo rianjeiro Axóuxere Editora que surge no médio da crise biosanitária e política desencadeada pela irrupção da covid-19. Pretende pôr em atenção a situação disruptiva ocasionada pela emergência da crise do coronavírus. Para pensar esta situação fizeram um chamamento a pessoas de âmbitos diferentes, perguntando sobre a sua perspetiva em relação ao que está a acontecer e ao que se pode desencadear a partir de agora. A cada pessoa convocada pediram-lhe que, num vídeo de aproximadamente quinze minutos, respondesse três questões: Que significa para ti a crise da covid-19? Achas que a vida depois disto será a mesma? Quais são as possibilidades de ação política e social neste contexto?
Os vídeos, que vão sendo disponibilizados periodicamente, podem ser visto nos canais de Vimeo e de Youtube criados pelo projeto. De perspetivas diversas, as diferentes pessoas participantes achegam visões sumamente interessantes sobre a situação, colocando em observação um momento como o atual para pensar criticamente o contemporâneo, quase à maneira das ontologias do presente de que falara o filósofo francês Michel Foucault. Pôr em crise a própria situação crítica, pôr em suspensão analítica o presente, observando a relação dialética entre poderes e subjetividades.
Toda crise supõe uma possibilidade de mudar aquilo que irrompe com um mesmo, aponta o filósofo ourensano Abraham Rubín no primeiro dos vídeos divulgados. Segundo Rubín, vivemos um acontecimento em que o real aparece com toda a sua força, acostumados como estamos a viver à margem dele, em construções subjetivas individualistas. Interessado na dicotomia entre sistemas autoritários de controlo como o chinês, aparentemente muito eficientes na gestão desta crise, e os sistemas democráticos ocidentais, que estão a usar mimeticamente esses modelos de controlo, para Rubín há um caminho a explorar na observação de novas subjetividades não baseadas no ego, que ponham em marcha a construção de realidades comunitárias.
As pessoas participantes observam o momento atual para pensar criticamente o contemporâneo
Por sua vez, o politólogo e advogado Borxa Colmenero considera que esta crise é a manifestação mais extrema, por ele vivida, duma gestão política da vida. Acha importante sermos prudentes nas análises do futuro mas pensa que o importante desta crise é a interrogação que nos deixa sobre como somos governados, quer dizer, a crise fala-nos sobre como o poder captura a vida na lógica neoliberal. Além disso, Colmenero antecipa uma possível mudança face a uma governança biopolítica multiforme.
Um foco diferente é o que expõe a historiadora Lara Barros no seu vídeo. Acha que é uma oportunidade de parar para olhar outra vez no adentro e compreender o incompreendido no nível do corpo, questão que, segundo Barros, tem a ver com a revisão necessária do modelo de vida vigente: heteropatriarcal e violento. Barros expõe que as éticas do cuidado e o ajeitado do comum podem dar a nascer formas de vida que saibam estar alerta frente a formas de controlo repregantes.
A mesma preocupação pelo controlo social aparece na análise do escritor David Rodríguez, que começa por afirmar que esta crise não é algo novo. No entanto, considera que a sua singularidade é o caráter global frente a um acontecimento inesperado que unifica os processos ao nível planetário. Pensa que as mudanças serão lentas, mas está preocupado em especial pelo facto de que as situações deste tipo costumam ser usadas pelos poderes como laboratórios para observar o comportamento das pessoas frente a determinadas medidas, para tirar conclusões sobre como edificar outros modelos de gestão política.
No quinto dos vídeos disponibilizados, a filóloga María Alonso pergunta-se como é possível que na situação atual se normalize o excesso. Aponta que a diferença entre o global e o local irá desaparecer, e também percebe que esta crise é relativa. Sente que a crise mais importante será a climática, da qual esta da covid-19 seria uma antecipação, devido à clara raiz zoonótica na origem do coronavírus. Como projeto para o futuro, Alonso postula a necessidade de reintensificar o vínculo social.
Segundo Abraham Rubín, vivemos um acontecimento em que o real aparece com toda a sua força, acostumados como estamos a viver à margem dele, em construções subjetivas individualistas
Por sua vez, num depoimento de pendor filosófico, Brais Arribas afirma que vivemos o acontecimento do nosso tempo e que irá produzir inegáveis modificações sociais. Para Arribas, a crise mostra que os seres humanos não estamos inscritos numa esfera ontológica superior e pensa que a tecnociência não deve ser o centro do domínio e da governança. A partir destas bases, observa que a crise reforçará a coesão social e pode ajudar a definir processos de resistência frente a formas de controlo insuspeitadas.
Parcialmente convergente é o pensamento da advogada e crítica cultural Ania González, que vê nesta crise a possibilidade do acordar de uma consciência coletiva de acompanhamento que reavive uma certa ideia da comunidade, até de comunidade secreta, alheia aos modelos egocêntricos e que intensifique o nosso desejo como potência. A González interessa-lhe a crise como possibilidade mutacional da vida e da perceção, e considera que a prática legislativa deve ser pensada a partir da reconfiguração dos limites do exercício dos nossos direitos, para institucionalizar o direito das formas de vida não economicistas.
Ania González vê a possibilidade do acordar de uma consciência coletiva de acompanhamento que reavive uma certa ideia da comunidade
Num dos mais recentes vídeos publicados, a filósofa ferrolana Raquel Ferrández observa, na linha do pensamento de Blaise Pascal, que um dos grandes problemas é a nossa incapacidade para estarmos sossegados num quarto e, como Pascal Quignard, acha que todos somos uma comunidade de solitários. A procura desta comunidade interna de solitários leva emparelhada a questão da incerteza, intimando com a qual, mas sem confundir-nos com ela, nos abrimos a uma política do interno que defende a vida a partir duma clareza interior que ajuda a veicular a determinação exterior. Ferrández entende que situações como esta são as que nos ajudam a nos colocar nessa vertigem de transformação.
Finalmente, num contributo de contornos bem diferenciados, o militante independentista Antom Santos afirma que a crise da covid-19 nos mostra que algo não estava a correr bem. Acha que as saídas podem ser regressivas ou emancipatórias, mas que em geral haverá uma nova consciência crítica, se bem que também irá aparecer em certos setores um devir autoritário de controlo. Interessado particularmente pelo que acontecerá na Galiza, pensa que se demonstra que comunitarismo, afetos comuns ou ajuda mútua se contrapõem luzidamente às formas neoliberais de socialização urbanas. Santos identifica nessa via um caminho a retomar, que liga com a conceção militante clássica em que se materializa o mal-estar, para repensar o espaço ativista e atuar com base numa estruturação política encarnada, material, presente.