A defesa dos direitos das mulheres negras, africanas e afro-descendentes marca a açom da Femafro, uma associação sem ânimo de lucro. Feminismo e luta antirracista dão-se a mão para recuperar o papel histórico desenvolvido pelas mulheres negras em Portugal. Para analisar o acontecido no bairro de Jamaica e as suas consequências sociais, falamos com Lúcia Furtado, militante de Femafro que diagnóstica que a luta contra a discriminação racial em Portugal passa por desmitificar o passado colonialista.
Há um discurso racista a calhar na população portuguesa?
Existe um discurso vincadamente racista na população portuguesa mas o mais perigoso é que muitos não consideram serem racistas e nem têm consciência. Todas as problemáticas são atribuídas ao negro, cigano e migrante, não é legitimada a existência de portugueses negros, são usadas de maneira contínua expressões como “migrantes de segunda geração”, que legitimam que um cidadão nascido em Portugal não é português, e o jovem negro é tido sempre por criminoso mas quando se deparam com um jovem branco já é considerado desvairos de uma criança. A nível mais institucional vemos o modo como as questões do racismo e discriminação ainda se encontram sob a tutela do Alto Comissariado para as Migrações (ACM), como são poucos os cidadãos negros que encontramos nas universidades e em posições de poder, que a representatividade negra nos meios é quase nula exceto em questões musicais ou de desporto ou quando falamos de crime e, por fim, como em pleno século XXI temos cidadãos que nasceram em Portugal, que a única referência que têm é Portugal, mas que não possuem a nacionalidade portuguesa.
O acontecido no Bairro da Jamaica não é um facto isolado. São habituais as atitudes racistas e discriminatórias da PSP?
O que aconteceu no Bairro da Jamaica é recorrente nos bairros da periferia, simplesmente muitos dos casos não chegam à luz do dia. Temos de compreender que não podemos personalizar as coisas, é claro que existem bons profissionais na PSP e a mesma é necessária, mas isso não invalida que exista um problema ao nível de formação de alguns agentes. A maioria dos sujeitos negros que vivem em Portugal já passaram por situações desnecessárias que não ocorrem com os restantes portugueses ou na mesma proporção. Vemos situações várias, desde ser impedida a entrada de jovens em espaços comerciais, ou o caso do jovem que foi detido por supostamente não possuir habilitação para conduzir em Portugal, mesmo apesar de explicar que podia, foi preso e só foi libertado muitas horas depois após ida a tribunal e a juíza validar os seus argumentos.
Tem a Femafro linhas de ação concretas contra a violência racista e policial?
A linha de ação da Femafro não está diretamente ligada à violência racista e policial mas todos os acontecimentos dos últimos anos, como os do Bairro da Cova da Moura, da Nicol Quinayas, do Bairro da Jamaica e muitos outros mais fazem com que seja impossível manter-nos de fora de toda esta problemática. Marcamos presença sempre do modo que for possível em todas estas ações.
Apresenta características específicas a violência racista contra as mulheres?
Claro, a mulher negra por ser mulher, negra e muitas vezes de classes mais baixas fica numa posição muito vulnerável nesta sociedade, tornando‑a mais suscitável de sofrer violências e discriminação. Todo este cenário acaba por empurrar as mulheres negras para as camadas mais baixas e precárias da sociedade o que faz com que seja mais difícil quebrar este ciclo. Recebemos relatos de mulheres negras que confessam que ficam com os trabalhos mais pesados fisicamente por serem negras, relatos de mulheres que ao nível da saúde veem seus sintomas minimizados ou mesmo sendo-lhe negada medicação para aliviar as dores porque consideram que têm grande resistência, ou mesmo o modo como o racismo afeta a saúde mental das mulheres negras.
Pensam que o governo português tem a luta contra o racismo na sua agenda?
Não, seguindo a linha do mito do “bom colonizador” o racismo é considerado pontual, logo não apresentam medidas específicas que o combatam, especialmente quando falamos da população negra/afrodescendente. Por exemplo, vemos linhas específicas para ciganos, LGBTIQA+ e não encontramos nada no que se refere às populações negras, pois no seu imaginário o racismo não existe e estamos todos bem integrados.
Que ações de denúncia levaram a cabo os coletivos antirracistas nos últimos meses?
Fizeram diversas atividades sendo difícil enumerá-las, mas encontramos o exemplo do caso das agressões a Nicol Quinayas, o caso da detenção de um jovem à porta de uma escola no Cacém, toda a situação do Bairro da Jamaica e consequente manifestação onde quatro jovens foram detidos. São casos que os movimentos seguiram de perto mostrando todo o seu apoio e todos os meios para que fossem denunciados. Depois a nível mais institucional encontramos campanhas da Lei da nacionalidade que mostram toda a injustiça que levou uma geração de jovens a nascer em Portugal e não ter nacionalidade ou como em 2016 um grupo de coletivos, organizações e individuais apresentou um carta aberta para o Comité das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação Racial a criticar o Estado por não reconhecer que são precisas políticas específicas para estas comunidades.
Porque é importante explicar a história da população negra em Portugal e “desmitificar” o Portugal dos descobrimentos?
A presença da população negra em Portugal antecede em muitos séculos os últimos anos cinquenta anos, contudo foi completamente apagada da História portuguesa. Durante muitos anos cerca de 10% da população de Lisboa era negra. O que sabemos sobre esta História? O que aconteceu com esta população negra? Mas já temos artigos que pretendem desmitificar esta questão. Por exemplo, José Pereira e Pedro Varela escreveram um texto sobre as origens da luta antirracista em Portugal durante o período de 1911–1933 e Cristina Roldão apresentou artigos sobre as mulheres negras e feminismo negro em Portugal recuando até ao século XV. Não podemos continuar com o mito de que Portugal foi um bom colonizador, o colonialismo é mau e ponto final. Ainda temos livros de História onde as negras e negros são referidos como produtos/mercadorias. Que jovens pretendemos formar se são ensinados que segmentos da população são produtos/ mercadorias? É necessário contar a História, as violências cometidas e que os privilégios que agora um segmento da população possui advêm de toda essas violências. O Conselho da Europa no seu último relatório foi bem explícito indicando que Portugal deve alterar os livros escolares, que devem passar a referir a violência de Portugal contra os indígenas das colónias.
Há um censo da população negra em Portugal? Que percentagem representa esta?
A recolha de dados étnico-raciais não é permitida pela legislação portuguesa. Contudo, nos últimos três anos devido a muita pressão externa da sociedade civil e organizações foi criada uma comissão de análise para a recolha de dados étnico-raciais nos censos de 2021. Ainda não é uma certeza se esta recolha irá ocorrer ou se será nos censos mas a comissão encontra-se neste momento a trabalhar esta temática.