Mercantilizaçom, desigualdade, controlo social e hospitalcentrismo versus redes cidadás, equidade, novos direitos e novos modelos institucionais.
Há alguns dias um bom amigo afirmava que a pandemia do COVID 19 nos coloca diante dumha única crise, a enésima crise do capitalismo. Umha crise que desta volta nasce no ámbito da saúde, mas que é na mesma medida económica, política, social e ecológica e deita acima da mesa duma maneira drástica desigualdades sociais, a falta de equidade e o seu impacto na saúde. Sairemos desta, mas é provável que nada torne a ser igual. O destino depende de nós.
Para entender a origem do colapso é importante refletir como chegamos a onde estamos agora. Que condiciona o tremendo colapso do sistema sanitário que estamos a sofrer? Nas notícias parece claro que o responsável é a pandemia, mas isto nom é assim em todos os países da Europa.
Os movimentos sociais tenhem vindo a denunciar incansavelmente a situação dum sistema profundamente ferido. Um problema evidentemente silenciado. Privatizaçom e mercatilizaçom do sistema nom pararam desde 1986, ano em que é promulgada a Lei Geral da Sanidade. Desde entom que diversas leis, decretos e normativas em todo o território estatal permitírom a entrada de corporaçons privadas e dos diversos mecanismos do mercado a estrutura sanitária pública. Um doce como o da sanidade nom pode ficar isento das garras dos interesses privados.
Proliferam os modelos de colaboraçom público-privados para construírem e gerir hospitais e centros sanitários. O caso mais conhecido, o do complexo Alzira que tivo de ser resgatado em duas ocasions com dinheiro público. Os centros privados oferecem serviços públicos- a custos muito elevados- mediante a concentraçom e a contrataçom. Em definitiva, desmantelou-se o sistema público e abrírom-se as portas da parasitaçom privada.
As medidas austericidas de 2008 mais nom fôrom do que umha desculpa mais para recortarem no sistema sanitário.
Como resultado, a despesa pública em sanidade por habitante é a mesma desde há dez anos. De acordo com os dados do próprio Ministério de Sanidade, o estado investe 1.594 euros anuais por habitante, o Luxemburgo 4.271 euros e Itália 1.864 euros.
Desde 2009 o tempo de espera para as intervençons cirúrgicas nom urgentes aumentou em mais de 64% e o tempo de espera para as consultas de atençom especializada em mais de 40%. Os serviços de urgências colapsam periodicamente. A atençom primaria e comunitária está completamente invisibilizada e desmantelada com muitos profissionais na mais absoluta precariedade. Em todos os territórios do estado está a despoletar umha açom privatizadora e mercantilizador que, felizmente, encontrou fortes resistências sociais. Encontramos centros de atençom primária dependentes de grandes hospitais geridos por empresas privadas, e todo baixo o guarda-chuvas repetindo aquele mantra “temos o melhor sistema sanitário do mundo”, “é a joia e orgulho do estado”.
Em definitiva, o coronavírus SARS COV‑2 encontrou umha sanidade massacrada, minguada e desmantelada tanto em termos de material como de equipamento e pessoal desde há anos. Privatizada. Mercantilizada. Precarizada. Enferma em essência. O colapso que sofremos nom é fruto duma casualidade. Tem responsáveis políticos diretos.
E como sempre, o neoliberalismo tira proveito da situaçom. Dizia Naomi Klein que o coronavírus funciona como um choque. A partir do choque, o poder consegue impor certas medidas que doutra maneira teriam umha forte contestação social. Com a desculpa do vírus e do necessário confinamento imposto, a militarizaçom das nossas ruas e o controlo social da populaçom som um feito que incorporamos, com um pobre questionamento, à nossa normalidade. Encontramos militares e polícias nas conferencias de imprensa diárias sobre a situaçom da pandemia. E aqui a pergunta: temos dinheiro para este decolar do controlo social e nom para as necessárias equipas de proteçom para profissionais nem para os testes de coronavírus? É importante vigilar se esta escalada de controlo persiste depois da pandemia.
Há dinheiro para este decolar do controlo social e nom para as necessárias equipas de proteçom para profissionais?
Infelizmente há muitas pessoas apontadas à denúncia. Multiplica-se o policiamento a partir da janela. Juízos de valor (em voz alta ou pensando‑o) contra quem está a fazer melhor ou pior o confinamento, sem sequer perguntar por que estám na rua e qual a sua realidade. Olhamos mal o moço que sai ao terraço comunitário, apupamos a mae que vai ao supermercado com a criança sem perguntar se vive sozinha com ela. Perguntamo-nos se temos direito à guarda conjunta.
Admiramos os famosos que lavam as maos no Instagram e aos milionários que fam doaçons aos hospitais.
No entanto, é possível que o neoliberalismo tire proveito desta situaçom para reforçar as ideias privatizadoras e mercantilistas da saúde e da sanidade, com a desculpa de que o sistema saúde público que nom deu resposta adequada à pandemia. Importa sublinhar o feito de as corporaçons privadas terem evitado atender pessoas nesta crise, ou como continuam a fazer negócio com as provas de coronavírus.
Queremos ser críticas com a atual gestom da pandemia. Partindo dum sistema privatizado e hospitalocéntrico, a pandemia gere-se dumha perspetiva hospitalocentrista. Nom negamos a necessidade de dispor de camas hospitalares e espaços suficientes nas unidades de cuidados intensivos para atender a toda a populaçom, mas sim queremos lembrar-nos da invisibilidade da atençom primária e comunitária. Ainda que o foco mediático esteja completamente posto nos hospitais, a atençom primária está a atender a grande maioria de pessoas com a COVID e no entanto resolveu-se transferir pessoal dos centros de atençom primária para os hospitais, o que julgamos ilógico. Os centros de saúde som o recurso sanitário mais próximo da comunidade, evita hospitalizaçons e exposiçons desnecessárias ao fazer acompanhamento dos casos leves e moderados nos domicílios e também às pessoas que som dadas de alta nos hospitais.
Existe também um lado positivo. As reaçons da cidadania. As redes de solidariedade vicinal. Som estas as que é importante reforçar, visibilizar, pôr em valor e acima de tudo, as que se conservem depois da pandemia. Vizinhas que saem a fazer desporto nas varandas ou a dançarem juntas. Escadas, bairros e vilas inteiras organizadas para cuidar das mais velhas, das migradas, a fazerem as compras ou, simplesmente, a falarem nos pátios.
Existe também um lado positivo. As reaçons da cidadania. As redes de solidariedade vicinal. Som estas as que é importante reforçar.
Esta situaçom ofereceu a possibilidade de criar redes, espaços de cuidados e atençom às pessoas, muitas pela primeira vez, a partir da própria comunidade. Se o podem fazer as pessoas nom o podem fazer os governos? Virámos solidárias, sim, mas que ninguém pense que nos importam mais as ajudas do que os direitos. Ken Loach dizia: “O poder substituiu a justiça pola caridade”. O governo espanhol faz maquilhagem de ajudas para as pessoas que mais estám a sofrer esta situaçom, ajudas para autónomos que nom chegam ou que nom som acessíveis. Microcréditos para pagarmos a renda com uma documentaçom junta incompreensível. Equipamentos improvisados para as pessoas sem abrigo. Ajudas desnecessárias se todas tivermos direitos desde a base.
Achamos que é importante reforçar estas redes comunitárias nascidas espontaneamente, mas desde a solidariedade reivindicativa, é importante repensar as equipas de atençom primária para fazer delas equipas multidisciplinares do ponto de vista sanitário, mas também social. Pôr o foco na prevenção e na saúde. Sair do modelo biomédico hospitalocentrista onde o mais importante som as camas e o investimento farmacêutico e tecnológico e virar o rumo em direçom a um modelo de saúde que tenha em conta os determinantes sociais e onde o principal objetivo seja mantermo-nos saudáveis.
Em conclusom, é possível corrigir os erros promovendo a equidade das pessoas, pôr o bem-estar e os cuidados no centro. Queremos direitos, nom queremos nem controlo nem caridade. Entom, sim ficaremos na casa.