Há uns dias andava pola rede um twit com umha imagem de Foucault surpreendido e a frase “o castelo medieval é um construto social”. Um amigo mencionou-me: “opinions?”. “A favor 100%”, dixem-lhe. Um pouco a brincar, bastante de verdade. Ao longo da história houve construçons militares em épocas e lugares muito díspares, mas ao terem a defesa como finalidade comum, é natural existirem similitudes dum ponto de vista arquitetónico: muralhas grossas, poucos ocos, verticalidade, fossos… É o seu papel na organizaçom interna dumha sociedade —e especialmente os significados que se lhe engadem por causa disto— o que melhor nos permite estabelecer umha análise conceptual através do tempo.
Os castelos situam-se, cronologicamente, depois dos castros —que simplificadamente podemos definir como os assentamentos amuralhados que habitavam os povos da Idade do Ferro— e antes das fortalezas —construçons de Idade Moderna que respondem à vontade das monarquias autoritárias de dotar as suas fronteiras dum sistema defensivo centralizado. No entanto, esta classificaçom nom sempre é percebida com claridade. Do mesmo jeito que as fortalezas modernas som chamadas popularmente de castelos —por exemplo a de Sam Filipe em Ferrol—, na documentaçom medieval galega escrita em latim o termo castrum tivo um uso mui polissémico, podendo nomear todo tipo de construçom com funçons militares, bem fosse um antigo povoado castrejo, umha atalaia de vigia, um fortim romano ou um castelo medieval.
No feudalismo os poderes públicos estám nas mans daqueles que tenhem a força para exercê-los, e nesse contexto quando surgem os castelos
Isto supujo umha dificuldade extra à hora de determinar quando aparecem os primeiros castelos, e mesmo deu origem a umha teoria historiográfica, muito estendida em Portugal, que defende que os castros antigos nunca se desfuncionalizárom, senom que fôrom evoluindo em soluçom de continuidade até se converterem em castelos. Acho que esta hipótese nom é acertada entre outras cousas precisamente porque os castelos som um construto social, e por tanto som produto dum mundo que nada tem a ver com o dos castros —um construto social nom quer dizer umha cousa inventada, quer dizer umha cousa que é resultado das condiçons materiais e as contradiçons específicas do seu tempo.
Um pouco antes do ano mil, a cristandade ocidental começa um processo de expansom e crescimento económico que vai trazer consigo mudanças nas estruturas sociais. A aristocracia, que baseava a sua posiçom na possessom das terras trabalhadas por campesinos, começou a acumular nom só riqueza, mas o exercício dos poderes públicos: cobro de impostos, exaçom de rendas sobre a produçom agrícola, monopólios sobre pontes ou moinhos, direito a impartir justiça, legitimidade para o uso da violência, e até corveias —isto é, trabalhos forçados nom remunerados.
Nom surpreendo ninguém: em muitas épocas históricas, se nom em todas, há elites que se beneficiam do sistema explorando a maioria da populaçom. O que caracteriza o feudalismo, o modelo que está a nascer nessa altura, é que a privatizaçom dos poderes públicos nom é subjacente ou subtil, mas a teoria política abertamente aceitada. Os poderes públicos estám nas mans daqueles que tenhem a força para exercê-los e a habilidade para chegar a alianças e arrebatar-lhos a outros mediante a guerra. É nesse contexto quando surgem os castelos, como ferramenta dos privilegiados para conseguirem e manterem a maior quota de poder possível através da violência.
A apariçom dos castelos na documentaçom galega nom só coincide na cronologia com o feudalismo, senom que acompanha o processo de feudalizaçom das origens até o momento de auge no século XII. Assim, os primeiros datam-se no século X, mas som ainda simples instrumentos de guerra, como continuarám a ser ao longo do XI. Isto é: o verdadeiramente valioso ao início é o domínio das terras, enquanto estas fortificaçons som apenas um meio para ajudar a manter essas terras baixo controle. A sua grande efetividade fará que vaiam ganhando importância à medida que o sistema se recrudesce, até no século XII os castelos se converterem em muitos casos nas células administrativas do mundo feudal.
Em 1028 Bermudo III doa à Igreja de Santiago “a terra de Carnota com os dous castelos que há construídos nela: Sam Jurjo e Canedo”; porém, em 1127, Afonso VII entrega “o castelo de Sam Jurjo, novo e velho, com os seus límites, homens e terras, a saber: Entins, Céltigos, Barcala e Carnota, e todos os seus benefícios, tal como hoje em dia é da nossa jurisdiçom; e divide com os castelos de Trava e Ferreira”. Antes o que se entregava era a terra, que levava consigo a possessom dos castelos; agora o que se entrega som os castelos, cuja tença implica o controle das terras —aliás, as terras vinculadas ao castelo de Sam Jurjo ocupam um espaço muito maior que o primitivo território de Carnota.
Os castelos começam a ser úteis quando o novo modelo político se estende e deixam de sê-lo quando esmorece, no século XV.
Sabendo que o feudalismo é um fenómeno europeu, sabemos que também o é o encastelamento. Em todo o Ocidente cristão encontramos um processo paralelo, mas com diferenças notáveis. Tem que ficar para outra ocasom a análise das peculiaridades do encastelamento galego em relaçom com outros espaços peninsulares e europeus. Adianto só umha. Galiza tem umha orografia muito irregular, cheia de elevaçons. Atendendo à dicotomia que estabelece Oliver Creighton entre o impacto do castelo sobre a paisagem e o impacto da paisagem sobre o castelo, no caso galego impom-se com claridade a segunda opçom. Os castelos localizam-se mormente no alto dos montes, para divisar terras e caminhos e para garantir umha melhor defesa dificultando a acessibilidade. É aí onde confluem com os castros, que muitos séculos antes ocupárom, sendo umas construçons radicalmente diferentes, emprazamentos com as mesmas características. Muitos castelos estám construídos sobre velhos castros abandonados. Se a isto engadimos a ambiguidade léxica com que eram nomeados, a confusom historiográfica está servida. Acho que com a minha pesquisa ajudei modestamente a dissipá-la.
Os castelos começam a ser úteis quando o novo modelo político se estende e deixam de sê-lo quando esmorece, no século XV. Nesse momento acontecem as revoltas irmandinhas. A sociedade galega destruiu o feudalismo do mesmo jeito que este se perpetuou ao longo de cinco séculos. Com muita violência.