No momento de escrever estas linhas, a maquinaria de guerra do imperialismo, a poderosa NATO, já se preparou para combater. Anunciou umha invasom cujo autor dizia que nom se ia produzir e que, com efeito, nom se produziu. Agora, após ter assegurado ao mundo conhecer as intençons belicistas da Rússia (data e hora incluídas), Washington, Londres, Paris ou Madrid entram mais umha vez no jogo de desconhecer o que acontece no terreno. A retirada de contingentes militares russos das fronteiras ucranianas de acordo com o que tinha anunciado abertamente o próprio Kremlin: que estavam ali para realizarem exercícios militares e que voltariam às suas bases assim que se dessem por terminados.
A realidade nom condiz com o discurso das potências ocidentais sobre o mundo. Mas depois de termos assistido já à invençom de diversas ameaças iminentes (da Jugoslávia às armas de destruiçom maciça do Iraque, passando por Líbia e Síria), isto também nom é umha grande novidade. Se a NATO fosse umha criança, poderíamos ainda explicar-lhe o que acontece com quem mente permanentemente com a história do Pedro e o lobo. Mas esta organizaçom nom é umha criança. E, pior ainda, parece ter à mao todo um exército de meios de comunicaçom corporativos com todo o interesse em acreditar no seu discurso e em difundi-lo por toda a parte todo o tempo.
Num paralelismo pouco surpreendente, a própria criaçom da NATO em 1949 respondeu já a um desses conhecimentos certos que, porém, jamais se verificárom: que a Uniom Soviética da altura estaria pronta para lançar um ataque sobre a Europa com o objetivo de conquistá-la. Como no caso da retirada de tropas que agora dim desconhecer, as potências que integram a NATO também parecêrom nom advertir o colapso da URSS e, portanto, o fim da «ameaça» que justificava a sua existência. Portanto, dérom continuidade à aliança semeando bases e instalaçons militares polo mundo, com preferência para o chamado cinto de Wolfowitz (tratando de envolver, precisamente, a vasta extensom da Rússia). Temos, ademais, o histórico da NATO no pós-Guerra Fria, que é eloquente avondo para quem quiser olhar: nengumha das suas missons foi de defesa. Bem ao contrário, fôrom sempre de agressom. Primeiro contra os países do bloco socialista e do Movimento dos Nom Alinhados; e, mais tarde, quando aquela estruturaçom do mundo acabou por desaparecer, contra países de governos incómodos ou que se negárom a pregar-se à folha de rota imposta, invariavelmente, polos Estados Unidos. E é isso, precisamente, o que está em causa nesta crise ucraniana.
Nom se trata, como muitos meios apresentam, de umha crise nova, surgida em relaçom aos recentes movimentos de tropas russas perto das fronteiras da Ucrânia (mas dentro de território russo). Mas tampouco de umha dinâmica de velha guerra irresolúvel que afunde as suas raízes nos tempos do czar Pedro I sem qualquer variaçom. Esses elementos existem, é claro, mas o ano zero desta crise é muito mais recente. Em 2014, com umha Ucrânia que vinha de receber a enésima negativa da UE a abrir-lhe as portas, voltava novamente a olhar para umha Rússia quase recuperada da terrível década de desmantelamento que foi 1990 e com boas projeçons de futuro. O imperialismo alentou, organizou, armou e deu cobertura política, diplomática e mediática a grupos de extrema direita e abertamente neo-nazistas que também nom escondiam as suas simpatias por colaboracionistas da Alemanha nazi como Stepan Bandera ou pola Waffen SS Galizien, nem a sua antipatia visceral por qualquer cousa que cheirar a russo. O objetivo era mudar o governo legítimo da Ucrânia que liderava aquela viragem por um outro que, sem pretender verificar a sua entrada na UE, nom fosse cair de volta na órbita de Moscovo, e pudesse acabar convertendo-se em mais umha pedra do muro de bases militares a circundar Rússia. A fórmula escolhida —baixo o nome de Euromaidan— foi umha dessas revoluçons coloridas que apanham todo o apoio dos grandes impérios mediáticos, convertem presidentes eleitos em inimigos públicos que todo o mundo deseja ver em prisom ou fugidos, e servem para justificar sançons, embargos e todo tipo de ataques económicos e políticos à vista, enquanto os ataques de força —no caso, paramilitares— se dam à socapa.
A vitória daquela operaçom aparentemente espontânea e popular, mas na realidade estritamente imperialista, deixou, com efeito, um novo governo a ocupar Kiev, formado por grupúsculos fascistas inchados, mas inteligentes o suficiente para vestirem alguns dos seus membros de fato e gravata. O novo regime ucraniano tinha, numha mao, novos dirigentes pró-europeus recebidos imediatamente em Bruxelas e Washington; e na outra, neonazistas que passárom a dirigir o exército e a integrar batalhons paramilitares em operaçons de limpeza de toda dissidência política —que se concentrou, sobretodo, nas áreas de maioria russa da Crimeia e da regiom industrial do Donbass. A organizaçom dessa dissidência anti-golpista (e, em grande medida, também antifascista) cristalizou em repúblicas auto-proclamadas em três desses distritos (Crimeia, Donetsk e Lugansk), dos que só o primeiro celebrou um referendo de reintegraçom na Rússia, que obtivo 95% do voto favorável.
As operaçons de repressom desatadas por esse novo regime —a base de assassiNATOs extra-judiciais, massacres como a da casa dos sindicatos de Odessa, ou bombardeamentos maciços contra milícias populares e alvos civis— dam forma à única guerra que verdadeiramente se vive na Ucrânia. Umha guerra em que, desde esse 2014 até hoje, Kiev continuou a repressom cada dia; Moscovo, envolvido já na guerra síria, limitou as suas açons ao envio de suprimentos e ao apoio diplomático às repúblicas populares. Ocidente, por sua vez, dedicou-se a apagar os focos mediáticos para negociar com o novo poder ucraniano a sua incorporaçom à NATO.
A iminente cristalizaçom desse processo de entrada, que poria instalaçons da Aliança Atlântica a um tiro de pedra de Moscovo, é apenas o detonante desta nova fase quente da crise que, como foi dito, leva já anos acima da mesa, mesmo que os meios que agora fam soar os tambores da guerra nom lhe tenham prestado qualquer atençom. Umha Ucrânia na órbita atlântica nom só romperia de maneira definitiva os acordos de Minsk de 2015 (que visavam dar umha saída política à situaçom), como também os compromissos de nom expansom da NATO para o leste a que James Baker e Mikhail Gorbatchov teriam chegado no seu dia e que fôrom essenciais para o final da Guerra Fria.
A iminente cristalizaçom do processo de entrada na NATO da Ucrânia, que poria instalaçons da Aliança Atlântica a um tiro de pedra de Moscovo, é apenas o detonante desta nova fase quente da crise que leva já anos acima da mesa
Por outra parte, deveria resultar evidente que esse alargamento serve mais aos interesses dos Estados Unidos do que aos europeus. Afinal, a hegemonia que essa aliança militar consolida é a de Washington. A análise, porém, nom pode limitar-se a decifrar em que medida a hegemonia norte-americana é protegida. Sobretodo porque a contestaçom dessa hegemonia nom procede apenas da Rússia, mas dum conjunto de potências emergentes que apostam na soberania (da China ao Irám), e doutros focos resistentes (de Cuba à Palestina, passando pola Venezuela ou a Síria). Por outras palavras: porque nom é só a Rússia a falar de umha nova ordem mundial multipolar e sem um poder ubíquo incontornável, que é o maior temor duns Estados Unidos que há menos de trinta anos chegárom a proclamar, tam empoladamente, o «Século Americano». O escopo tem de ser, necessariamente, mais amplo.
A análise nom pode limitar-se a decifrar em que medida a hegemonia norteamericana é protegida. Sobretodo porque a contestaçom dessa hegemonia nom procede apenas da Rússia, mas dum conjunto de potências emergentes que apostam na soberania e doutros focos resistentes
Mesmo se o conflito nom deflagrar —em cujo caso todo o mundo perde—, o lugar que mais sentiria os efeitos dum novo status de hostilidades seria a Europa, que continua em grande medida dependente do gás russo. Os Estados Unidos, em troca, ganhariam um mercado para exportar o seu gás com umha enorme margem de lucro, ao que haveria ainda que somar os custos do transporte. Polo momento, o grande capital europeu parece sentir-se à vontade num modelo em que as suas empreitadas imperialistas devem pedir permisso a Washington antes de começar, e os governos da Uniom Europeia parecem dispostos a correr os riscos desse cenário de volta ao passado em troca dum pedaço do bolo. Mas o bloco imperialista do Atlântico Norte fai anos que mete água. Nem Paris, cuja aposta nuclear a tem feito menos dependente do gás; nem Berlim mostram o entusiasmo doutras operaçons imperialistas. Londres tampouco parece esquecer a negativa de Washington a inclui-lo na parceria militar com a Austrália para contrapesar o crescente poder da China. E outros governos eurocépticos, como o da Hungria, já começárom a lembrar que há um direito internacional para ser respeitado, polo menos nas aparências.
Há umhas décadas, umha reflexom como esta teria sido, com toda probabilidade, umha crónica de feitos consumados. Hoje, porém, o tabuleiro está bem mais aberto, e as prediçons só podem ser conjeturas. Por enquanto, o alargamento da NATO nom se verificou. Mas umha cousa já sabemos: que com a perspetiva de umha guerra que envolveria diretamente quatro potências nucleares, nom parece que romper pactos, acordos e compromissos seja boa estratégia para rebaixar tensons.