Nos últimos tempos o debate dos cuidados, trazido polos feminismos, passou a de-centrar a agenda de muitos espaços que se pretendem alternativos, de esquerdas e/ou anticapitalistas. No foco já fôrom postos temas como a conciliaçom familiar, o reparto de tarefas, o uso dos espaços e a necessidade de assumirmo-nos vulneráveis e colocar as emoçons no centro. Todas medidas necessárias para adubar o terreno da igualdade mas nom de avondo para a enorme tarefa de colocar as vidas ‑e nom o capital- no centro.
Ao falarmos de cuidados nom falamos só do direito a ser cuidadas, mas também do direito ao auto-cuidado e do direito a nom cuidar. Partimos da base de que as possibilidades para acadar e fazer uso destes direitos nom som iguais para todas e, portanto, convertem-se em privilégios duns frente à privaçom deles das outras (privaçom que será maior quanto mais baixo seja o tipo de género, procedência, cor da pele ou classe com que cada pessoa seja lida).
As mais das mulheres que conheço ‒ brancas e de classe média ‒ levámos anos a luitar porque estes direitos nos sejam reconhecidos e, sobretudo, por reconhecer-no-los a nós próprias (luita para a qual nós temos mais possibilidades de aceso do que as mulheres racializadas e/ou de classe baixa). Mas o balanço entre estes três direitos é complexo, pois se eu tenho o direito a auto-cuidarme e a nom cuidar, mas a outra tem o direito a ser cuidada: quem cuidará de quem?
Se hoje muitas nos sentimos culpadas cada vez que decidimos nom cuidar é porque sabemos que, ao fazê-lo, periga o direito da outra a ser cuidada. Isto evidencia que umha trama sustentável de cuidados das pessoas em especial estado de vulnerabilidade está ainda por construir. E também que o modelo de família nuclear heteropatriarcal, que se traduz em priorizar relacionamentos de duas a duas, nom avonda para cobrir os cuidados que as vidas precisam para serem dignas.
Se a pensom de meus pais nom dá para irem a um lar de idosos, ou se a sua vontade é envelhecer na casa, como exercer daquela o meu direito a nom cuidar? Quem vai cuidar das que temos enfermidades crónicas ou degenerativas? As nossas crianças? Quem se nom temos quartos para reproduzir a cadeia global de cuidados, ou se ainda tendo-os, nom queremos reproduzi-la? Quem se nom temos parelha, se vivemos soas, se estamos a milhares de quilómetros da casa cuidando de outras pessoas para sobreviver, quem?
Colocar as vidas no centro passa necessariamente por desmontar um modelo de relacionamento que nunca possibilitará a igualdade porque está sustentado na centralidade do individualismo, do salve-se quem puder, do “eu cuido do que é meu”.
O difícil balanço entre o direito a ser cuidadas, o direito ao auto cuidado e o direito a nom cuidar só será possível na construçom de umha comunidade ampla de afetos onde caibamos todas ‒ e nom só as assalariadas, as pensionistas, as brancas, as que som do meu sangue ou aquelas com que tenho um relacionamento afetivo-sexual. Umha comunidade ampla de afetos onde todas as vidas importem por igual.