Entrevistamos a poeta, investigadora e ativista portuguesa Raquel Lima, que vem de recolher o prémio aRi[t]mar (Galiza-Portugal) ao melhor poema em língua portuguesa. Nesta entrevista, Raquel Lima fala-nos da arte como arma social, do poder da língua, dos ativismos feministas e antirracistas e da relaçom da poesia portuguesa com a Galiza.
Raquel, acabas de visitar a Galiza para receber o prémio aRi[t]mar ao melhor poema em língua portuguesa, por Liberdade mais cruel, e também para participar no Poemagosto, festival de poesia em Alhariz. Como foi a tua experiência e qual era a tua relaçom prévia com a Galiza?
Receber o prémio aRi[t]mar foi muito gratificante, tratando-se dum prémio votado polo público. Nom estava à espera da nomeaçom e desconhecia o evento, entom, confesso que fui completamente apanhada de surpresa. Escrevim o poema Liberdade mais cruel num momento muito particular da minha vida, de mudanças e revoltas, entom é umha escrita muito visceral e nom som muitos os meus poemas que venham desse lugar flagrante da inquietude, do desequilíbrio, da assunçom das feridas, das fragilidades mais profundas abertas literalmente. Participar na gala, ainda mais no âmbito do festival Maré, gerou a possibilidade de conhecer artistas incríveis como o angolano Toty Sa’Med, a brasileira LaBaq e as galegas Ugia Pedreira, Sabela, Uxía.
O convite do poeta Carlos da Aira (que ganhou o prémio aRi[t]tmar ao melhor poema galego) para participar no Festival Poemagosto surgiu na mesma altura da divulgaçom dos resultados dos prémios aRi[t]mar, de maneira que sentim que ganhei dous prémios de seguida! Adorei a programaçom desse encontro, polos projetos musicais e porque tivo em conta poetas que transportam umha dimensom política forte, nom só na literatura, mas também na sua atuaçom na academia, ativismo, governo, artes e outros âmbitos. De maneira que conhecer xs poetas foi muito enriquecedor e inspirador.
Eu acredito em que estas oportunidades surjam da minha relaçom prévia com a Galiza, desde a minha participaçom em diferentes eventos em 2018, nomeadamente o festival Alguén que Respira no Teatro Principal de Santiago de Compostela, a convite do Antón Lopo; o evento Os Três Tempos da Poesia, Música, Pintura, Baile no Verbum Museum em Vigo, a convite do Marcus de la Fuente; e, finalmente, o Festival Feminista 85C também em Vigo, a convite das poetas gamberras Nuria Vil e Vanessa Glemsel. Penso que todas essas experiências tenhem vindo a fortalecer umha relaçom de familiaridade com a Galiza e esse interesse e acolhimento som muito importantes para a minha construçom enquanto poeta.
“Fum sempre escrevendo imenso desde a adolescência. Escrevia porque sentia que essa era umha forma confortável para expressar a minha imaginaçom e emoçons”
Antes de mais, podes contar-nos um bocado como é a tua relaçom com a poesia, quando começou e por que?
Interessei-me pola leitura desde cedo, durante a escola primária, altura em que sentia um grande prazer ao ler os textos de língua portuguesa e, muitas vezes, no infantário, era convidada a ler para os outros colegas. Mais tarde, com cerca de 14 anos, e depois de ler muitas histórias de aventuras, arrisquei começar a escrever a minha aventura. Na altura também gostava de ler as anedotas do Tonecas para a família e inventar cançons com a minha irmã. Fum sempre escrevendo imenso desde a adolescência, seja em formato de diário ou tentativas de escrita de contos. Escrevia porque sentia que essa era umha forma confortável para expressar a minha imaginaçom e emoçons. Sempre tivem umha relaçom muito curiosa com as palavras. A poesia chegou mais tarde, por volta dos 19 anos, primeiro timidamente guardando os escritos na gaveta até que, anos mais tarde, comecei a participar em saraus de poesia e eventos de slam poetry e spokenword.
Na tua poética (que ao meu modo de ver abrange muito mais do que os próprios poemas) há umha clara aposta pola comunicaçom direta da poesia com formatos como o slam poetry, que transcendem o livro de poemas. Poderias explicar-nos um pouco por que apostas por isto?
Os formatos de apresentaçom de poesia com base na oralidade chegaram de forma muito natural, pois basicamente eram espaços em que me sentia confortável. Polo lado lúdico, espontâneo, interativo e comunitário desses encontros. Além disso, do ponto de vista estético, sempre me agradou imenso a possibilidade de manipulaçom de ritmos, silêncios, gestos, hesitaçons, respiraçons, frequências, performances,e essas dimensons nom conseguimos controlar com a poesia escrita dumha forma corporal e orgânica. Daí que a publicaçom do meu primeiro livro e áudio-livros de poemas Ingenuidade Inocência Ignorância reúne poemas dumha década de trabalho essencialmente com a poesia oral, quando comecei a sentir que deveria fechar um capítulo, que queria amadurecer a minha escrita, assim como os espaços e formatos para onde a costumava transportar, quando percebi que o áudio era essencial para garantir valores poéticos fundamentais para mim. Mais tarde compreendi que, mais do que a oralidade, interessa-me a oratura como dimensom filosófica e ontológica, e umha poética do corpo presente. E é sobre isso que trato atualmente na minha investigaçom de doutoramento na Universidade de Coimbra.
“A poesia, a literatura e as artes em geral, sempre fôrom ferramentas essenciais nas luitas de libertaçom contra o sistema colonial. Desde os anos 50 e 60 que o trabalho de guerrilheiros nos matos africanos era complementado por trabalho intelectual (e particularmente literário) em torno do mesmo objetivo. E acredito que isso se mantém até aos dias de hoje, em escalas e conjunturas políticas diferentes”
É óbvio escuitando-te e lendo-te que acreditas na poesia como arma política. Que achas que achega esta ferramenta ao ativismo?
R: A poesia, a literatura e as artes em geral, sempre fôrom ferramentas essenciais nas luitas de libertaçom contra o sistema colonial. Desde os anos 50 e 60 que o trabalho de guerrilheiros nos matos africanos era complementado por trabalho intelectual (e particularmente literário) em torno do mesmo objetivo. E acredito que isso se mantém até aos dias de hoje, em escalas e conjunturas políticas diferentes. Acredito na poesia como espaço de construçom de sujeitos políticos e na arte-educaçom como ferramenta de transformaçom social. Daí que também dinamize diversas oficinas e workshops em torno da poesia e da sua interseçom com raça, género, classe e outros fatores de estratificaçom social. Portanto, a meu ver, o ativismo intelectual é um lugar válido de luita, mas que só se sustém em articulaçom direta com os outros tipos de ativismo, nomeadamente aquele que trabalha diretamente com as comunidades mais fragilizadas.
Na tua poesia há umha clara mostra da vivência pessoal (como mulher, como negra, como precária, etc.) como jeito de denúncia de realidades opressoras universais. Como influe a tua identidade na tua escrita?
Eu acredito que a identidade do/da poeta nom se pode dissociar da sua escrita. Penso que finalmente habituamo-nos a considerar determinadas identidades como a norma, o padrom e o cânone e a nom questionar a forma como essas fazem o trabalho contrário, o de impor a sua influência de forma hegemónica e o de oprimir a coexistência de outras subjetividades. Portanto, eu falo do meu lugar de enunciaçom, que é atravessado por um corpo específico, num momento histórico concreto, e desde umha experiência particular. Como é que essa identidade influencia exatamente a minha escrita? Isso vai depender das diversas interpretaçons de quem lê e/ou escuita.
Dentro dos múltiplos ativismos onde militas ativamente, um é o do movimento polos direitos raciais, que atingiu especial relevância nos últimos meses devido ao assassinato nos Estados Unidos do norteamericano George Floyd. Como se viveu isto em Portugal? Como achas que se reflete esta desigualdade no panorama artístico português?
O movimento da luita negra e antirracista em Portugal começa no início do séc.XX e portanto é umha luita antiga e que tivo momentos de maior e menor visibilidade. Dos acontecimentos mais recentes em Portugal, participámos em diversas manifestaçons públicas antirracistas, desde o início de 2020, tendo sido relacionada com o George Floyd a penúltima. Antes, Giovani Rodrigues, um jovem estudante, foi assassinado em Bragança; a Cláudia Simões foi espancada violentamente por um agente da PSP em frente à sua filha menor e recentemente o ator Bruno Candé foi assassinado com quatro tiros. Todos estes crimes tivérom umha motivaçom racista, muitas vezes associada à extrema-direita que ainda persiste em Portugal e se encontra infiltrada nas forças policiais. De maneira que estamos em Portugal com muito trabalho para fazer pola frente, umha vez que o acompanhamento jurídico a estes casos é escasso e negligente. Isso também se reflete no panorama artístico português, no qual a representatividade negra é mínima, nom só em termos de artistas mas também de curadoria e programaçom.
“Da minha experiência na Galiza, e apesar de reconhecer que o galego também se encontra oprimido polo castelhano, penso que o conceito ‘lusofonia’ tende a nom ser tratado desde umha perspetiva decolonial comprometida e que isso pode acabar por reproduzir e perpetuar questons que precisam urgentemente ser debatidas”
Finalmente, tes falado de como o teu sotaque é de todas partes e de ningumha devido à procedência da tua família e a tua própria. Como achas que se relaciona a lusofonia com o galego? E a poesia portuguesa com a poesia galega? Que ideia levas da Galiza, do idioma e do panorama poético galego após esta visita?
R: Eu nom digem que o meu sotaque é de todas as partes porque honestamente falo português de Portugal, tendo nacido e crecido cá, entom vou aproveitar esta oportunidade para reformular melhor o que quigem dizer no festival Poemagosto, nom gosto de ser apresentada como a “representante da língua portuguesa” pois a minha relaçom com a língua portuguesa é feita de tensons, reinvençons, contradiçons e ambiguidades. E isso resulta do reconhecimento e convivência com outras línguas de Angola, São Tomé e Senegal e da compreensons de que, em alguns casos, a sua quase extinçom deve-se à imposiçom colonial da língua portuguesa nesses territórios. Ou seja, quando reconhecemos o papel político das línguas, compreendemos que desenham projetos de poder, entre os quais o próprio colonialismo. E isso é algo que nom me deixa confortável e que tenho, espontaneamente, trabalhado na minha poesia. Tentei evidenciar o mesmo, de forma breve, quando recebim o prémio na gala aRi[t]mar em Santiago de Compostela.
Quanto ao termo Lusofonia, considero‑o muito problemático porque, na minha opiniom, a intençom de unir territórios que partilham umha mesma língua tem que passar polo reconhecimento do que escrevim anteriormente. E, polo contrário, o termo tem vindo a ser usado para sustentar/continuar teorias lusotropicalistas que som umha das principais formas de preservar o racismo estrutural e institucional na nossa sociedade. Da minha experiência na Galiza, e apesar de reconhecer que o galego também se encontra oprimido polo castelhano, penso que o conceito “lusofonia” tende a nom ser tratado desde umha perspetiva decolonial comprometida e que isso pode acabar por reproduzir e perpetuar estas questons que precisam urgentemente ser debatidas.
De qualquer forma, nada disto invalida o fortalecimento de trocas poéticas entre os territórios, foi muito inspirador conhecer a poesia das poetas Charo Lopes e Andrea Nunes Brións — comprometidas politicamente desde um olhar interseccional sobre a diversidade de mulheres e experiências — e acredito que nós, aqui em Portugal, teríamos muito a ganhar se estabelecéssemos umha relaçom recíproca no sentido de diversificar a literatura inteligível para ambas as partes.