“Canta a rã no mes de abril, encrúa o tempo e volvese ao covil” (tradicional)
Poucos animais apresentam tantas semelhanças e são tão contrapostos no imaginário popular, como rãs e sapos. As rãs, de pele lisa, aparecem associadas a personagens simpáticas, protagonistas de lindos contos infantis, enquanto os sapos, de pele rugosa, veem-se como seres malditos, ligados à bruxaria, cujo “ar”, cuspe e urina são peçonhentos. Mas nem tudo são mentiras nesta superstição, já que na pele de muitos dos nossos sapos há glândulas que segregam toxinas algo irritantes para as mucosas.
As crianças de antigamente apanhavam rãs, às quais faziam fumar e submetiam a outros inúmeros martírios que, hoje, constituiriam um escândalo para mentes cândidas. Um desses meninhos era o pequeno Vítor, que ocupava o seu tempo de lazer a explorar os campos do seu Ferrol natal à procura de bichos, uns bichos que acabou por identificar e colecionar. Aquele rapaz “bichólogo” de família abastada, apesar das luzes e sombras que marcaram a sua carreira científica, chegaria a ser o mais insigne naturalista galego do século XIX.
Vítor Lopes Seoane e Pardo-Montenegro (1834–1900) completou as licenciaturas de Medicina e Direito, formando-se também em Ciências Naturais. Com dezoito anos foi nomeado sócio de mérito e catedrático de Botânica no Museu Popular de Madrid. Depois, exerceria a profissão de médico em Ferrol e daria aulas de Física, Química e História Natural no liceu da Crunha. Nas férias residia entre a Casa Grande de Cabanas e as Torres do Alho, em Sás, paços que eram propriedade da sua mulher Francisca de Riobô, uma rica fidalga. A sua paixão foi a História Natural. E ainda que nas suas pesquisas abrangeu toda a Taxonomia da Fauna e Flora da Galiza, as contribuições mais importantes de Seoane para a Ciência centraram-se na Herpetologia, quer dizer, no estudo dos anfíbios e répteis. Foi um dos secretários do primeiro Congresso Internacional de Zoologia (Paris, 1889) e mantinha correspondência com os principais biólogos europeus do seu tempo: Bedriaga, Blanchard, Boulenger, Dohrn, Graells, Günther, Haeckel, Lataste, Willkomm… ou, mesmo, com o grande Darwin.
Vítor Lopes Seoane e Pardo-Montenegro em 1885 com as ferramentas rudimentares de que dispunha, descreveu a singularidade de duas das nossas rãs
Naquela época, a Taxonomia baseava-se apenas no estudo morfológico dos seres vivos, aos quais se tentava enquadrar, com maior ou menor acerto, na rígida classificação lineana. No início dos anos sessenta do século XX, modernas técnicas de Biologia Molecular, como a análise cromossómica ou a eletroforese de proteínas, permitiram estabelecer novas relações filogenéticas entre as distintas espécies. Mais tarde, o desenvolvimento em 1983, por Kary Mullis, da Reação em Cadeia da Polimerase (PCR), que permitiu sequenciar o DNA, revolucionou completamente a Taxonomia… e não só! Uma revolução ainda em curso. Pois bem, Seoane, em 1885, com as ferramentas rudimentares de que dispunha, intuiu e descreveu a singularidade de duas das nossas rãs, às quais chamou cientificamente Rana perezi e Rana temporaria parvipalmata; as técnicas moleculares permitiram classificá-las em 1974 e 2020, respetivamente, como espécies diferenciadas.
A rã-verde-meridional (Pelophylax perezi) é uma espécie própria da Península Ibérica e da Ocitânia, que pode chegar a hibridar com outras rãs europeias próximas, como Pelophylax ridibundus e Pelophylax lessonae. Foi descrita por Seoane a partir de exemplares recolhidos na província da Crunha. Gosta de águas soalheiras e suporta bem a poluição. As patas deste anfíbio eram comidas algures, como na antiga Lagoa de Antela, onde existia o costume de as “pescar” e até eram comercializadas.
A rã-galaica (Rana parvipalmata) é um endemismo do noroeste peninsular, que divergiu há uns 4 milhões de anos da rã-comum-europeia (Rana temporaria), a sua congénere de maior tamanho, amplamente distribuída polo centro e norte da Europa e com a qual hibrida numa estreita faixa do leste das Astúrias. A sua origem explica-se pola existência aqui de diferentes refúgios glaciais no Pleistoceno. Esta rã apresenta tonalidades castanhas, frequentemente avermelhadas. Muito ligada a bosques caducifólios montanos e a matas ribeirinhas, está ausente das regiões com maior influência mediterrânica (boa parte das Rias Baixas, das bacias do Minho e do Sil, e do extremo meridional do país). Seoane descreveu‑a a partir de exemplares recolhidos, com muita probabilidade, nas Fragas do Eume.
A outra rã de cor castanha que encontramos na Galiza é a rã-ibérica (Rana iberica), mais pequena que a anterior, tem umas patas posteriores proporcionalmente mais longas. Também é uma espécie endémica do quadrante norte-ocidental peninsular, embora tenha uma área de distribuição muito mais ampla do que a rã-galaica. Está espalhada por toda a nossa geografia, ainda que sempre próxima aos cursos de água.
A rela-ibérica (Hyla molleri), até há pouco considerada subespécie da rela-europeia (Hyla arborea), está distribuída polo sudoeste europeu. Recebe também os nomes populares de carranco, estroça, rã-das-quenturas, rã-da-silveira, rã-de-Santo-António… Nesta rã a coloração dorsal pode variar, dependendo das circunstâncias, entre diferentes tonalidades que podem ir do verde vivo ao cinzento-escuro. Possui distintivamente discos adesivos nas pontas dos dedos que lhe permitem uma atividade arborícola entre a vegetação alta e densa que orla poças, lagoas e ribeiras. É o único representante na Galiza da família Hylidae, bem representada nas zonas tropicais do Planeta.
Quatro som as espécies de rãs presentes no nosso território: a ‘Pelophylax perezi’, a ‘Rana parvipalmata’, a ‘Rana iberica’ e a ‘Hyla molleri’
Estas são as quatro espécies de rãs presentes no nosso território. Quando Pedro Galán, destacado herdeiro da obra de Seoane, e José Curt publicaram em 1982 Esos Anfibios y Reptiles Gallegos, o primero guia herpetológico galego, estas rãs eram denominadas cientificamente: Rana perezi (Rana ridibunda poucos anos antes), Rana temporaria, Rana iberica e Hyla arborea. Quatro décadas mais tarde, só uma delas mantém o mesmo género e espécie…
A Taxonomia, como qualquer modelo de classificação, pretende unicamente organizar os nossos conhecimentos sobre a imensa variedade natural. O conceito de espécie é, e deve ser, um conceito discutido e discutível, sempre em revisão constante, porque na Ciência não há dogmas, apenas humildes aproximações à realidade.