“Proíbe se por ordem da alcaldia, / que medrem porque sim / as rosas do jardim municipal. / Dende agora as pombas têm / que pedir licença pra voar…”. Assim é que começava o poema Bando, do nosso Manuel María, que saía do prelo em 1958. A ideia, por simples, é genial: um contido que simula ser uma série de paroxísticas proibições impostas por um alcalde franquista qualquer, junto com uma forma que faz contrastar a linguagem burocrática com a redação metrificada. O efeito é um escarnecedor retrato do fascismo.
Não pude evitar pensar em este poema quando o amigo Gianmichele me deu uma cópia dum peculiar informe da Administração de Reggio Calabria (Itália) sobre a pequena vila de Riace. O informe, datado em fevereiro 2017, é tudo o contrário ao Bando; porque Riace encarna tudo aquilo que é contrário ao fascismo. Ali explica-se: “este relatório […] não vem redigido segundo critérios e fórmulas burocráticas/administrativas, […] por quanto com o presente deseja-se evidenciar e achegar um instrumento de compreensão do fenômeno Riace […] e tentar, assim, dar uma explicação nem só do que se tem feito em Riace mas, sobretudo, como é que se tem feito pelas pessoas (de todas as cores e nacionalidades) que são as principais e direitas protagonistas”.
O que segue no informe é a descrição, quase bucólica, da pequena vila de Riace: as suas escolas multiculturais e pluriétnicas, sede de uma fortíssima vida comunal; as suas humildes casas, recuperadas do abandono pelas suas novas moradoras; o sistema de pagamento municipal que permite jantar a quem não tem que levar á boca; os ateliers artesanais em que as povoações recém-chegada e autóctone trabalham dignamente para si e as barracas públicas, para a instalação de animais domésticos e hortas, dirigidas ao auto-abastecimento. Pero o que é que lá aconteceu?
Riace esteve a destinar fundos públicos para o acolhimento de pessoas migrantes em situação irregular provendo-lhes de serviços básicos
O informe fora redigido por pessoal funcionário do estado italiano, a petição de associações da vila, com o objetivo de solicitarem o levantamento da proibição de obter fundos públicos por parte da câmara municipal do pequeno povo calabrês, que para a altura fora ditada pelo governo italiano. A ração: as suspeitas das autoridades de que lá produzia-se uma delapidação de fundos públicos. Em efeito, Riace esteve a destinar fundos públicos para o acolhimento de pessoas migrantes em situação irregular, provendo-lhes de morada, alimentação, trabalho, cuidados e serviços básicos. Isso sempre foi admitido pelo alcalde de Riace, Mimmo Lucano, e pola sua equipa, que conceberam as tales medidas por rações humanitárias; mas também porque o acolhimento servia para dinamizar uma região empobrecida durante décadas a causa das políticas de desenvolvimento económico estatais, que resultaram na expulsão para o norte e para as cidades da população autóctone. Assim, por anos, Riace foi símbolo de resistência contra as cruéis políticas migratórias italianas e europeias, dirigidas a disciplinar a força de trabalho e permitir a acumulação de capital.
A vila foi símbolo de resistência contra as cruéis políticas migratórias, dirigidas a disciplinar a força de trabalho e permitir a acumulação de capital
As reações foram, certamente, inúmeras: os partidos de estrema direita, de direita e de centro-esquerda carregaram contra o patife Lucano; a administração pública despregou todas as suas armas para investigar a tão perigoso criminal; a ‘Ndragheta pressionou para rematar quanto antes a quem boicotava o seu negócio de trabalho escravo migrante fácil e, enfim, o establishment judiciário, sempre á altura das suas encomendas às duas beiras do Mediterrâneo, condenou Lucano a 13 anos de prisão.
Hoje, Mimmo e as pessoas que com ele desobedeceram leis injustas estão a aguardar pela apelação da dura sentença, que foi recebida com indignação nos movimentos solidários de todo o globo. No entanto, o estado italiano ocupou-se de desmontar o projeto de acolhimento e hoje Riace semelha mais à vila do Bando do que ao projeto impulsado por Mimmo e as suas companheiras. Com tudo, nestes tempos de racismo e homofobia crescente, de guerras, hipocrisias e atitudes miseráveis, agradeci poder escutar recentemente em boca do Mimmo uma frase sanadora: “voltá-lo-ia fazer”. Obrigado, Mimmo.