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Riace, a vila que acolhe um modelo de desobediência a leis injustas

por
en­rico mat­tia del punta

Proíbe se por or­dem da al­cal­dia, / que me­drem por­que sim / as ro­sas do jar­dim mu­ni­ci­pal. / Dende agora as pom­bas têm / que pe­dir li­cença pra voar…”. Assim é que co­me­çava o po­ema Bando, do nosso Manuel María, que saía do prelo em 1958. A ideia, por sim­ples, é ge­nial: um con­tido que si­mula ser uma sé­rie de pa­ro­xís­ti­cas proi­bi­ções im­pos­tas por um al­calde fran­quista qual­quer, junto com uma forma que faz con­tras­tar a lin­gua­gem bu­ro­crá­tica com a re­da­ção me­tri­fi­cada. O efeito é um es­car­ne­ce­dor re­trato do fascismo. 

Não pude evi­tar pen­sar em este po­ema quando o amigo Gianmichele me deu uma có­pia dum pe­cu­liar in­forme da Administração de Reggio Calabria (Itália) so­bre a pe­quena vila de Riace. O in­forme, da­tado em fe­ve­reiro 2017, é tudo o con­trá­rio ao Bando; por­que Riace en­carna tudo aquilo que é con­trá­rio ao fas­cismo. Ali ex­plica-se: “este re­la­tó­rio […]  não vem re­di­gido se­gundo cri­té­rios e fór­mu­las burocráticas/administrativas, […] por quanto com o pre­sente de­seja-se evi­den­ciar e ache­gar um ins­tru­mento de com­pre­en­são do fenô­meno Riace […] e ten­tar, as­sim, dar uma ex­pli­ca­ção nem só do que se tem feito em Riace mas, so­bre­tudo, como é que se tem feito pe­las pes­soas (de to­das as co­res e na­ci­o­na­li­da­des) que são as prin­ci­pais e di­rei­tas protagonistas”.

O que se­gue no in­forme é a des­cri­ção, quase bu­có­lica, da pe­quena vila de Riace: as suas es­co­las mul­ti­cul­tu­rais e plu­riét­ni­cas, sede de uma for­tís­sima vida co­mu­nal; as suas hu­mil­des ca­sas, re­cu­pe­ra­das do aban­dono pe­las suas no­vas mo­ra­do­ras; o sis­tema de pa­ga­mento mu­ni­ci­pal que per­mite jan­tar a quem não tem que le­var á boca; os ate­li­ers ar­te­sa­nais em que as po­vo­a­ções re­cém-che­gada e au­tóc­tone tra­ba­lham dig­na­mente para si e as bar­ra­cas pú­bli­cas, para a ins­ta­la­ção de ani­mais do­més­ti­cos e hor­tas, di­ri­gi­das ao auto-abas­te­ci­mento. Pero o que é que lá aconteceu?

Riace es­teve a des­ti­nar fun­dos pú­bli­cos para o aco­lhi­mento de pes­soas mi­gran­tes em si­tu­a­ção ir­re­gu­lar pro­vendo-lhes de ser­vi­ços básicos

O in­forme fora re­di­gido por pes­soal fun­ci­o­ná­rio do es­tado ita­li­ano, a pe­ti­ção de as­so­ci­a­ções da vila, com o ob­je­tivo de so­li­ci­ta­rem o le­van­ta­mento da proi­bi­ção de ob­ter fun­dos pú­bli­cos por parte da câ­mara mu­ni­ci­pal do pe­queno povo ca­la­brês, que para a al­tura fora di­tada pelo go­verno ita­li­ano. A ra­ção: as sus­pei­tas das au­to­ri­da­des de que lá pro­du­zia-se uma de­la­pi­da­ção de fun­dos pú­bli­cos. Em efeito, Riace es­teve a des­ti­nar fun­dos pú­bli­cos para o aco­lhi­mento de pes­soas mi­gran­tes em si­tu­a­ção ir­re­gu­lar, pro­vendo-lhes de mo­rada, ali­men­ta­ção, tra­ba­lho, cui­da­dos e ser­vi­ços bá­si­cos. Isso sem­pre foi ad­mi­tido pelo al­calde de Riace, Mimmo Lucano, e pola sua equipa, que con­ce­be­ram as ta­les me­di­das por ra­ções hu­ma­ni­tá­rias; mas tam­bém por­que o aco­lhi­mento ser­via para di­na­mi­zar uma re­gião em­po­bre­cida du­rante dé­ca­das a causa das po­lí­ti­cas de de­sen­vol­vi­mento eco­nó­mico es­ta­tais, que re­sul­ta­ram na ex­pul­são para o norte e para as ci­da­des da po­pu­la­ção au­tóc­tone. Assim, por anos, Riace foi sím­bolo de re­sis­tên­cia con­tra as cruéis po­lí­ti­cas mi­gra­tó­rias ita­li­a­nas e eu­ro­peias, di­ri­gi­das a dis­ci­pli­nar a força de tra­ba­lho e per­mi­tir a acu­mu­la­ção de capital.

A vila foi sím­bolo de re­sis­tên­cia con­tra as cruéis po­lí­ti­cas mi­gra­tó­rias, di­ri­gi­das a dis­ci­pli­nar a força de tra­ba­lho e per­mi­tir a acu­mu­la­ção de capital
Domenico Mimmo Lucano, em 2019. (luigi salsini)

As re­a­ções fo­ram, cer­ta­mente, inú­me­ras: os par­ti­dos de es­trema di­reita, de di­reita e de cen­tro-es­querda car­re­ga­ram con­tra o pa­tife Lucano; a ad­mi­nis­tra­ção pú­blica des­pre­gou to­das as suas ar­mas para in­ves­ti­gar a tão pe­ri­goso cri­mi­nal; a ‘Ndragheta pres­si­o­nou para re­ma­tar quanto an­tes a quem boi­co­tava o seu ne­gó­cio de tra­ba­lho es­cravo mi­grante fá­cil e, en­fim, o es­ta­blish­ment ju­di­ciá­rio, sem­pre á al­tura das suas en­co­men­das às duas bei­ras do Mediterrâneo, con­de­nou Lucano a 13 anos de prisão. 

Hoje, Mimmo e as pes­soas que com ele de­so­be­de­ce­ram leis in­jus­tas es­tão a aguar­dar pela ape­la­ção da dura sen­tença, que foi re­ce­bida com in­dig­na­ção nos mo­vi­men­tos so­li­dá­rios de todo o globo. No en­tanto, o es­tado ita­li­ano ocu­pou-se de des­mon­tar o pro­jeto de aco­lhi­mento e hoje Riace se­me­lha mais à vila do Bando do que ao pro­jeto im­pul­sado por Mimmo e as suas com­pa­nhei­ras. Com tudo, nes­tes tem­pos de ra­cismo e ho­mo­fo­bia cres­cente, de guer­ras, hi­po­cri­sias e ati­tu­des mi­se­rá­veis, agra­deci po­der es­cu­tar re­cen­te­mente em boca do Mimmo uma frase sa­na­dora: “voltá-lo-ia fa­zer”. Obrigado, Mimmo.

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