Para além de todas as aparatosas mudanças que a sindemia está a provocar no dia a dia de milhons de pessoas, certos efeitos invisíveis semelham passar por vezes desapercebidos; nem por isso som de menor importáncia, e dos danos que esta sindemia pode causar na psique sairám, possivelmente, alguns dos fenómenos sociais e políticos mais interessantes do futuro. O coletivo Amanhecer fala com três especialistas do ámbito psicológico e psiquiátrico, tentando deitar luz neste panorama inédito, e também descobrir algumhas raiolas de esperança que podem apontar no pior dos panoramas.
Rosa Cerqueiro conhece em primeira mao os mal-estares psicológicos e as doenças psiquiátricas. É psicóloga clínica no SERGAS e é a atual porta-voz do Movimento Galego de Saúde Mental, um movimento cívico que combina a proteçom da saúde comunitária com a defesa do sistema público. Para Rosa, o próprio panorama pré-pandemia nom era encorajador, e recorda que segundo dados oficiais, ‘20% da populaçom padece ou vai padecer dum problema de saúde mental, nomeadamente ansiedade ou depressom.’ Muitos mal-estares mentais, recorda-nos Rosa, resultam no ‘abuso do álcool, cujo consumo aumentou entre os anos 2011 e 2017.’ Reforçando tendências negativas, a Galiza, juntamente com as Astúries, ‘supera média estatal em casos de suicídios, e também no consumo de ansiolíticos e antidepressivos.’
Saúde mental e direitos sociais
Nom existem demasiadas dúvidas sobre a necessidade premente dumha rede pública para paliar os efeitos mais duros deste deterioramento dos estados anímicos. E, porém, recorda Rosa, a irrupçom da Covid nom fijo senom retardar e saturar um sistema já de seu precarizado: ‘em dezembro do ano passado havia cerca de 8500 pessoas em lista de espera por umha primeira consulta de saúde mental’, diz-nos Cerqueiro. Desde a sindemia, ‘a atençom tivo que passar a ser predominantemente telefónica, sem existirem outros sistemas que poderiam ajudar melhor que a simplesmente telefónica.’ No caso das pessoas com patologias psiquiátricas, os obstáculos multiplicárom-se, pois o fechamento dos centros de dia ou o seu funcionamento restringido deixou os serviços nos mínimos.
Galiza supera a média estatal em casos de suicídios e também no consumo de ansiolíticos e antidepressivos
Rosa recorda que nom devemos desligar nunca os padecimentos mentais da conjuntura em que se produzem, e nomeadamente, do contexto social e económico que leva as pessoas à desesperança e ao padecimento. ‘O Movimento Galego da Saúde Mental criou-se precisamente no contexto da crise económica da passada década. Os problemas laborais, desafiuçamentos e duras condiçons de vida intensificavam-se, num momento em que os recursos de proteçom social e de saúde nom estavam à altura.’ Os paralelismos com a jeira atual som notáveis, como também o som as ferramentas de que um povo se pode dotar para encarar a adversidade: ‘reagir com solidariedade, coesom social e justiça é a garantia de ativarmos fatores protetores da saúde física e mental.’ Claro que neste caso, a previsível longa duraçom da crise, e a dimensom do colapso económico que se prepara, implicam um desafio sustentado no tempo: ‘as reaçons de esgotamento, incerteza, medo… vam influindo no nosso estado de ánimo; nom temos que pensar que isto leva necessariamente à patologia, mas sim a estados de cansaço mental e físico, dificuldades para conciliar o sono, transtornos afetivos…’
Com isso e contodo, Rosa Cerqueiro fai também um chamado à prudência na hora de avaliar os efeitos do que estamos a atravessar. Ainda é cedo para sabermos as derivaçons do processo, e além disso há um repositório de forças importante: ‘cumpre ter muitas cautelas antes de analisar. As pessoas temos umha grande capacidade de adaptaçom às situaçons verdadeiramente adversas. Se mantivermos o sentido de comunidade, se continuarmos pendentes dos nossos achegados, e se mantivermos claro o objetivo, as consequências nom tenhem porque ser devastadoras. No MGSM insistimos que os responsáveis políticos devem estar à altura, e deixar de culpabilizar a mocidade, o pessoal da saúde ou as trabalhadoras da residências.’
Rosa Cerqueiro: “As pessoas temos umha grande capacidade de adaptaçom às situaçons adversas. Se mantivermos o sentido de comunidade as consequências nom tenhem porque ser devastadoras”
Mal-estar e patologia
Iria Veiga, psiquiatra do sistema galego de saúde, estabelece umha precisom na hora de avaliarmos: ‘antes de sabermos como estamos na atualidade, como sociedade, temos que diferenciar muito claramente mal-estar e patologia. Obviamente, nos últimos meses multiplicam-se os problemas de ordem anímica, as mudanças de humor, a preocupaçom, as dificuldades para conciliar o sono… mas todo isto entra dentro dum quadro psicológico normal, próprio da vida. Nom som patologias. Umha outra cousa é que todo isto nom sejamos capazes de controlá-lo, que se cronifique, entom aí é que entramos noutro terreno. Digo isto porque existe umha tendência a patologizar vivências normais, e daí vem muitas vezes a sobremedicaçom.’
Iria acha que ainda é cedo de mais para sabermos como vai evoluir a vivência psicológica da crise: ‘o que nos dam até hoje os dados som duas informaçons fundamentais: a primeira, é que nos primeiros meses, no confinamento, houvo umha retraçom de procura, e a gente, por razons óbvias, tentou nom assistir aos serviços públicos por padecimentos mentais. Mais tarde, foi detetado certo aumento em assistência, mesmo em urgências, que registárom um aumento de casos relacionados com a saúde mental.’ Mas Iria enfatiza que ‘estamos ainda num estádio inicial do processo. Eu acho que com a passagem dos meses, assim que se notem os efeitos mais duros da crise social e económica, isto pode recrudescer.’
Iria Veiga: “Temos que diferenciar mal-estar e patologia. Nos últimos meses multiplicárom-se os problemas de ordem anímica, mas nom som patologias. Existe umha tendência a patologizar vivências normais e daí vem muitas vezes a sobremedicaçom”
À semelhança de Rosa Cerqueiro, Iria Veiga considera que corresponde ao sistema público de saúde travar batalha num contexto muito adverso, propiciado por decisons políticas. ‘Lembremos que vimos dumha década de constante precarizaçom do sector, nomeadamente privado de recursos humanos. Isto derivou em falta de qualidade e quantidade na atençom. E a saúde mental, que nom está contemplada como umha prioridade polos responsáveis institucionais, ainda padece isto de modo mais acusado. Para dar um exemplo, eu trabalho no Barbança, e lá há um só psicólogo para atender a toda a comarca. Com esta rácio, nom há um tempo mínimo de qualidade para dedicar a cada paciente, e a carga de trabalho é esgotadora.’
Existem singularidades galegas na saúde mental que demonstrem fraquezas ou potenciais para enfrentar esta sindemia? Iria afirma que é possível estabelecer paralelismos e divergências com o nosso contexto geográfico. ‘Se atendermos aos números a frio, aos dados epidemiológicos, e grosso modo, os dados conformam umha realidade muito semelhante à dos nossos vizinhos e vizinhas. Ora, eu qualitativamente deteto diferenças: existe umha rede social e familiar muito forte, ligada talvez à nossa herança rural, e isto evita a queda na pobreza extrema, e direta ou indiretamente no padecimento mental em solitário. Podemos considerar isto um forte na Galiza. Por outra parte, ainda estamos muito longe de ter normalizada a ajuda psiquiátrica. Existe um estigma social e as doenças mentais nom se tratam com a mesma naturalidade que outras patologias.’
Iria Veiga: “Existe um estigma social e as doenças mentais nom se tratam com a mesma naturalidade que outras patologias”
Além da necessidade artificial
Guillermo Rendueles é um veterano psiquiatra asturiano que desenvolveu um importante trabalho teórico sobre as modificaçons de carácter no capitalismo serôdio. Precisamente num contexto de interrupçom brusca dos hábitos sociais da sociedade de consumo situa ele a sua análise: ‘ainda estamos na fase de impacto, nom quero fazer avaliaçons prematuras. Mas apontaria mudanças surpreendentes, e nem todas negativas. Onde eu trabalho, diminuírom as patologias graves: os suicídios, os ingressos psiquiátricos ou os transtornos obsessivos. Dam-se casos ainda mais curiosos, como o das crianças, que adoitam padecer o chamado stress tóxico, e que tem a ver com o abandono. Pois nestes meses, devido a umha maior presença familiar, possivelmente este stress foi reduzido. Eu associo toda a mudança com aumento do contacto humano, pois ainda que se tenha reduzido o círculo amplo, intensificou-se o trato com o mais próximo.’
Para o psiquiatra asturiano Guillermo Rendueles o maior padecimento dá-se naqueles setores sociais mais dependentes do modelo de vida e lazer neoliberal. “Em contrapartida, os que tivérom capacidade de recolher-se melhorárom”, aponta
Para Rendueles, o maior padecimento dá-se naqueles sectores sociais mais dependentes do modelo de vida e lazer neoliberal que há poucos meses dominava: ‘trata-se de mal-estares, nom exatamente de patologias, dessa populaçom que precisa estar em contínuo movimento, atada à mobilidade, e ao lazer dos bares e do consumo, muitas vezes necessitada de se dissipar com tóxicos. Um tempo livre muito relacionado com as necessidades supérfluas e o ditado dos meios de comunicaçom, isso que Bifo chama a ‘fábrica da infelicidade’. Em contrapartida, os que tivérom capacidade de recolher-se, esses melhorárom. Recordou-me a situaçom à frase de Pascal, que dizia que a maior parte dos problemas humanos tenhem a ver com nom sabermos o que fazer ao estarmos sós num quarto.’
O psiquiatra nom esquece tampouco as dimensons mais obscuras desta crise: ‘quando os meios de comunicaçom me perguntam sobre isto, gosto de pôr o acento num fenómeno terrível: o tratamento inumano da velhice, que a epidemia trouxo à tona. A sociedade confinou as pessoas idosas nesta espécie de lazaretos modernos que som as residências de idosos, onde enfrentárom mortes solitárias e massivas. Eu digo que se a luita da minha geraçom foi contra o regime fechado dos manicómios, a da geraçom atual tem que ser contra este regime fechado para a terceira idade.’
Quanto às novas sociabilidades dependentes das tecnologias, Rendueles é fundamentalmente crítico: ‘é certo que durante estes meses se deu um uso muito amplo às redes, que atinge desde a formaçom e o tratamento psicológico até as relaçons pessoais e amorosas. Mas observo com muito receio isto, e mais do que tratar-se dum reforço dos laços, considero‑o antes o que César Rendueles chama de ‘sociofobia’. É um fenómeno ambíguo, eu sei-no, mas corremos um risco real de ‘japonizaçom’, de imitar esses adolescentes japoneses que cortárom o contacto com o mundo real para o substituir polo confinamento tecnológico, socialmente atrofiados. Se há algumha liçom que podemos tirar destes meses é a importáncia de estreitarmos os laços com o círculo próximo, sabermos viver de novo em coletivo sem as pressas e necessidades artificiais que tanto nos atavam.’