
Aos seus 74 anos, Xosé Estévez (Quiroga, 1943) continua a pensar e dar que pensar. Nasceu no seio dumha família humilde, estudou no seminário e, após se retirar da vida religiosa, exerceu como docente universitário de história no País Basco. A sua obra académica sobre as problemáticas nacionais no estado espanhol e as alianças entre os movimentos soberanistas é hoje amplamente conhecida e reconhecida. A sua própria vida, narrada por ele próprio em “A lagoa da memoria”, é também reflexo da história do nosso país. Som muitos anos e vivências que dam para umha longa conversaçom epistolar da que, nestas páginas, apenas podemos oferecer umha parte.
Dá a casualidade de que muito perto da sua casa viveu de neno Ernesto Guerra da Cal. Tivo relaçom com ele?
Ernesto Guerra da Cal nascera em Ferrol em 1911 e residiu de neno e moço em Quiroga, mas desde 1935 nom voltou pola vila e só se trasladou de Portugal a Vigo nos anos 60 umha vez para ver a sua nai. Portanto, eu nom o conhecim pessoalmente, mas tivem umha farturenta relaçom epistolar com ele desde a década de 80. Reparei na sua existência por um livro sobre literatura galega, basca e catalá no exílio, publicados pola editora Taurus. A parte galega escrevera‑a D. Ramón Martínez López, galeguista exilado e professor nos EUA. Nela dava conta do nosso Ernesto, como escritor e professor galego excecional, que dava aulas na Universidade de Nova Iorque.
Escrevim-lhe e respondeu imediatamente, estabelecendo umha grande amizade. Convidei-no a vir a Quiroga, mas negou-se. Queria conservar a imagem de Quiroga tal como a conhecera na infância, como um paraíso sublimado, a mátria que o unia com a sua pátria: Galiza. Ernesto bem merecia a dedicatória dum Dia das Letras Galegas, mas acho que jamais lho oferendarám os capitostes da Academia, pois tem vários ‘pecados’. Era democrata, republicano, independentista e reintegracionista.
Até nom há tantos anos o Seminário era a única via de acesso à educaçom para os nenos de aldeia. Foi este o seu caso?
É. Eu nascim numha família modesta: pais e três irmaos varons. Meu pai compaginava o trabalho no campo com a mecânica e a conduçom de autocarros e camions. Minha nai era labrega. Meu pai, apesar da sua austeridade despendedora, nunca me negou dinheiro para comprar livros.
Nunca se falava de política na casa, pois era um tema tabu imposto polo medo. Quando já proiam as primeiras ardências da puberdade, compramos um rádio marca Telefunken. Escuitávamos às noites os partes da BBC e de Rádio Paris. Meu pai mandava fechar todas as portas e janelas. Ouvia, calava e nom dizia nada. Com vinte anos perguntei-lhe por Castelao e apenas me respondeu que votara afirmativamente o plebiscito do Estatuto Galego em 1936. Que magoados nos deixou a longa noite de pedra!
Com estas premissas, o único jeito de profundar nos estudos, superada a escola, era entrar no seminário, pois os poucos ingressos familiares nom davam para mais. De facto, passamos polo seminário os três irmaos, embora os outros dous nom passárom da Filosofia.
Devo dizer que, apesar da excessiva disciplina e o rigor legionário com que me tratárom no Seminário das Ermitas, estou agradecido, especialmente ao Seminário de Lugo, pola formaçom humanística que me proporcionou e que foi fundamental para a minha trajetória posterior.
Você padeceu, no curso de 1958–1959 no Seminário de Lugo, o método repressivo do anelo, já descrito por W. Von Humboldt como usado contras as crianças euskaldunas. Como vos afetava aos nenos essa repressom colonial?
Sobre isto tenho algo escrito num livro que possivelmente algum dia saia à luz. Lembro o primeiro agravio em 1949, na escola de párvulos, quando fum castigado pola mestra por utilizar o galego no interior do tabernáculo educativo. A pena consistiu numha prostraçom de joelhos durante duas horas olhando cara à parede, da qual penduravam um crucifixo e o retrato do “Perenne”. As ofensas proseguírom no seminário menor das Erminas, a jeito de impropérios e reprimendas verbais contra os ousados usuários da língua de Rosalia e Castelao. Ali estivem de 1954 a 1958.
O cúmio repressivo rematou no curso 1958–59 no seminário de Lugo, com o estabelecimento do método do anel, utilizado já no século XVIII polos mestres de Navarra para erradicar o euscaro das bisbarras euskaldunas. O que ficava à noite com o anel tinha a obriga de desembolsar um peso, quantidade notável para a magra economia dum rapaz galego de classe modesta. Quantos pesinhos paguei! Mas nom me vencérom e menos ainda me convencérom.
Em 1963 optei por deixar o seminário e realizar um ano de prova na vida civil exterior, como instrumento de comprovaçom vocacional. Estivem em Madrid trabalhando no Ministério de Obras Públicas, desenvolvendo a minha labor a pé de obra. Nesse meio laboral padecim outra experiência que me supou um chanço mais na assunçom da consciência nacional. Tam aginha como encetava umha conversa com alguém desconhecido, notavam o meu acento galego. De forma imediata o interlocutor inqueria: “És galego?”, acompanhando o interrogante com o prebe dum gesto comiserativo e com um sorriso de piedade. A repetiçom deste feito quase me chegou a motivar umha espécie de complexo de inferioridade, o clássico complexo do colonizado, de autoxenreira, que tam bem descrevem Franz Fanon no seu livro Os condenados da terra, o ocitano Robert Lafont em Regionalismo, o martinicano Aimé Césaire no seu Discurso sobre o colonialismo e sobre todo Albert Memmi no seu Retrato do colonizado.
Na atualidade acontece-me o processo contrário. Numha ocasiom alguém me dixo que estava a perder o meu caraterístico e melódico sotaque galego. Logo reagim com reflexos felinos e viajei para Galiza para recuperar a fonética fisterrá. Hoje estou fachendoso de a ter e de a manter, porque considero que é um emblema irrenunciável e consubstancial às minhas raízes e à minha identidade.
Já ordenado sacerdote, entre 1967 e 1969 exerce na Fonsagrada como um crego atípico, que mesmo missava ‑pola primeira vez no franquismo- em galego. Entendia o sacerdócio como unha forma de militância?
Tenho que confessar um pensamento que me assaltava já desde o último ano de teologia: serei quem de permanecer no sacerdócio para sempre? Debulhava umha e outra vez esta ideia. Mas sempre me animava outra que ultrapassava esta: eu ordeno-me para fazer umha tarefa social, prévia ou ao mesmo tempo que qualquer outra de tipo espiritual.
Gostava muito dos teóricos cristaos e marxistas que se empenhavam em conjuntar e analisar as semelhanças entre cristianismo e marxismo, cristianismo e revoluçom, como Roger Garaudy, Giulio Girardi ou González Ruiz.
Estava ao tanto das ensinanças do Concílio Vaticano II, que empurraram a Igreja a umha modernizaçom. Também me aqueciam os estudos da exegese bíblica, pois doavam um importante conhecimento do contexto histórico em que surgiu Jesus Cristo, com umha mensagem revolucionária para aquela época. Gostava muito dos teóricos cristaos e marxistas que se empenhavam em conjuntar e analisar as semelhanças entre cristianismo e marxismo, cristianismo e revoluçom, como Roger Garaudy, Giulio Girardi ou González Ruiz.
Em 1969 vives unha auténtica aventura na preparaçom da campanha de agitaçom para o proibido Día da Pátria. Conta-nos como foi aquilo.
No livro Um crego atípico na Fonsagrada relato este acontecimento. Na reitoral de Santo Cristovo confecionarom-se nos dias prévios arredor de 22.000 panfletos que se espalhariam por toda Galiza. Nisto intervinhemos o bancário Fernando Campos, o pintor Xabier Pousa, Pepiño e um servidor. Uns dias antes houvera que ir a Compostela para ‘socializar’ umha multicopista ‘vietnamiana’ numhas oficinas quase a carom da esquadra da polícia e procurar uns consideráveis pacotes de fólios num desvio da estrada a Padrom. Na viagem de volta já houvo alguns problemas com o Pepiño, porque lhe dava ao jarro, falava de mais e mesmo deu no carro contra umha árvore, nom longe de Castro Verde. Nesta vila, que estava em festas, paramos bem entrada a noite para beber numha fonte ao carom da estrada. Topamo-nos com um sargento da Guarda Civil, que passeava tranquilamente na companha da sua dona. Começarom-me a tremer as pernas de tal forma que nom podia pará-las. Passei muito medo! Saudou-nos com educaçom, correspondemo-lo da mesma maneira e desejou-nos boa viagem.
Na reitoral de Santo Cristovo confecionarom-se nos dias prévios arredor de 22.000 panfletos com umha multicopista que se "socializara" em Compostela.
Naqueles anos, temeu acabar no cárcere para cregos antifranquistas da Samora?
Pois sim. Mas nisso nom pensavas muito, pois a Galiza necessitava de todas e todos e nom havia que acovardar-se por isso. Salvei de umha, quando, junto ao escritor Lois Diéguez, estávamos a piques de botar uns panfletos nas festas da minha vila, mas avisou-nos um guarda civil, pai duns amigos meus. Já havia daquela alguns cregos bascos e catalans como Xabier Amuritza, um grande bertsolari, ou Julen Kaltzada.
Continuando com a sua biografia: em 1973 assenta-se no País Basco como professor. O que aconteceu entretanto? Abandonou o sacerdócio?
Iniciei o processo de secularizaçom em 1970 e pugem-me a trabalhar novamente no Ministério de Obras Públicas. A partir das 6 do serám, ia a aulas noturnas na Universidade Complutense para fazer os últimos anos de Filosofia e Letras, na especialidade de Geografia e História. Casei em dezembro de 1971 com umha basca que estudava Económicas em Madrid e ao rematar a carreira no ano 73 e nom encontrar trabalho na Galiza emigrei para o País Basco, a terra da mulher, e logo entrei a trabalhar. Fum contratado pola Universidade de Deusto e também por um colégio de FP, pertencente a Kutxa Gipuzkoa. Estivem de professor nessa universidade desde 1973 até 2011, ano em que me jubilo.

Um dos seus principais temas de investigaçom, como historiador, é o das relaçons entre os soberanismos galego, basco e catalám. Acha esses vínculos internacionalistas fôrom mais intensos nos anos 20 e 30 do que agora?
Certamente as ligaçons fôrom muito fortes nos anos 20, pois o primeiro pacto Galeuzca, a Tripla Aliança, de orientaçom arredista, assinou-se em Barcelona a 23 de Setembro de 1923. No exílio galo assinárom-se novos pactos os anos 1924 e 1925. Voltou-se artelhar o Galeuzca ou Pacto de Compostela o 25 de julho de 1933. Funcionou o Haleusca durante a Guerra Incivil, pois Catalunha acolheu no seu seio os bascos e galegos leais à República. Voltou-se no exílio, sobretudo em Buenos Aires, México e Venezuela. Em todos estes convénios apostava-se numha Confederaçom de Naçons Ibéricas, que incluía Portugal, unida mediante pactos internacionais, voluntários, livres e reversíveis, que partiam da soberania de cada naçom assinante e do exercício do direito de autodeterminaçom.
Instalou-se a Guerra Fria, o regime franquista nom foi derrubado, antes bem mantido e todo isto ficou em nada. Apenas nos anos 70 houvo algumas tentativas de pacto Galeuzca em Paris, que nom prosperárom, protagonizados polo catalám Batista i Roca. Em 1998 houvo um momento de euforia galeuzcana com a Declaraçom de Barcelona, na qual tomei parte nalgumhas jornadas e fum impulsor no momento inicial, mas logo foi esquecida, principalmente pola banda catalá. Se hoje, na atual conjuntura, houvesse um Galeuzca forte e unido, outro galo cantaria.
Apostava-se numha Confederaçom de Naçons Ibéricas, que incluía Portugal, unida mediante pactos internacionais, voluntários, livres e reversíveis.
Tambén se ocupou da história basca, e de facto assina o tomo II da Historia de Euskal Herria publicada por Txalaparta, editorial muito próxima aos movimentos populares. Parece que no País Basco há um sistema forte de divulgaçom, recuperaçom da memória histórica, etc. Quais experiências bascas neste campo poderiam ser úteis para nós na Galiza?
Hoje na Galiza há muito bons historiadores, que aprofundam com honestidade, rigor e ajeitada metodologia no passado galego. Lembro Xosé Ramón Barreiro, Ramón Villares, Xusto Beramendi, Lourenzo Fernández Prieto, Anselmo López Carreira, Carlos Velasco, Uxío Breogán Diéguez e muitos dumha geraçom já mais nova, verdadeiramente mui competentes.
Percebo, porém, às vezes, um excessivo pontificalismo, a existência de capelas internas, umha excessiva sujeiçom académica às visons centralistas e umha falta de achegamento à sociedade. O historiador nom deve preocupar-se apenas polo passado. É um científico social, vive no presente e deve comprometer-se com ele, sobretudo, com as causas sociais dignas.
Devem-se utilizar mais canais populares, os meios audiovisuais, as novas tecnologias e as redes sociais, embora sem chegar a umha deturpaçom vulgar.
Os caminhos tradicionais já estám mui malhados e, ademais, muitos deles eram demasiado elitistas. Acho devem-se utilizar mais canais populares, os meios audiovisuais, as novas tecnologias e as redes sociais, embora sem chegar a umha deturpaçom vulgar, pois às vezes convertem o acontecer histórico em novela rosa, com um escoramento que fede a espanholidade. Tal é o caso das séries de TVE sobre Isabel a Católica ou Carlos o Emperador.
Neste sentido, você é colaborador habitual da revista Murguía, e vem de receber o XII Prémio Galiza Mártir e o III Prémio Manuel Murguía. Quais considera que som as tarefas pendentes do movimento memorialístico galego para os vindoiros anos?
A verdade é que ainda fica muito por fazer na Galiza, pois ainda é umha tarefa pendente a recuperaçom da memória histórica para os galegos e galegas termos orgulho de naçom. Como indiquei no discurso que pronunciei com motivo dos prémios citados, houvo umha estratégia calculada para ocultar a memória histórica coletiva. Esta operaçom coseu o tecido social e nom puido ser contrariada por umha minoria de historiadores que luitavam por ressuscitar o pulso da memória. É absolutamente imprescindível a aposta na memória histórica e a luita contra a amnésia coletiva que propugna o ópio das consciências, apaga a memória e sega a capacidade de transformaçom sociopolítica. Há que aplicar-se a fundo na sua reconstruçom, pois à memória nunca se lhe acaba o tempo.