Onde começa a animadversom espanhola contra a Galiza? O seu alcanço foi tal que alcançou rango popular e chegou ao refraneiro. O “antes puto que gallego” originou-se anonimamente. Escolheu o anonimato ‑neste caso letrado- o autor do Estebanillo González que encabeça esta crónica. Houvo grandes nomes próprios: os primeiros espadas do ‘Século de Ouro’ contribuírom com a campanha, com Góngora no posto de destaque. Da sua visita ao Val de Lemos tirara versos ferentes contra a paisagem, as mulheres e as classes populares do país.
O antropólogo Caro Baroja afirma que a nobreza dos tempos filipinos mal tolerava já a existência de línguas distintas do espanhol, e na sua listagem de ódios étnicos sobranceava o galego, por diante do basco.
A forma mais primária de desprezo é o silêncio. O Liber Regum, do século XIII defende que Afonso VIII, o primeiro rei perdurável de Castela, fora eleito monarca fundador num conclave de caudéis mesetários. Na realidade, Afonso tinha sangue galaico, era sobrinho de Fernando II, o rei que mandou construir o Pórtico da Glória e cujos restos jazem na catedral compostelana. As estratégias matrimoniais galego-navarras originaram Castela como realidade política. Porém, o Poema de Fernán González (1250) recunca na tese dumha origem inexistente: “de toda Spaña Castiella es mejor porque fue de los otros el comienzo mayor”.
Cumpria banir quatro séculos de história de hegemonia norocidental na Península, e quando por vez primeira pisam os casteláns terra galega, fam-no com a fachenda que nom abandonarám. Em 1385, o bispo foráneo de Ourense já se dirigia ao Concelho da cidade em espanhol, obviando a plena normalidade da que gozava o nosso idioma. Lois Tobio caracteriza atinadamente esta nascente presença alheia, alimentada pola vitória henriquina na guerra civil. Com os grandes senhores chegou “a derradeira escumilha porca da ressaca da Corte e das grandes cidades castelás, a capa mais baixa de ‘pretendentes’, parasitos e pilhabáns, por vezes verdadeiros pícaros”.
Com os poderes excecionais da Real Audiência abre-se a Idade Moderna na Galiza. Ainda no século XVII, numha Galiza pacificada e dirigida por casteláns, J. del Hoyo chama a atençom sobre o funcionamento da entidade: “trata las cosas del reino con demasiada soberanía e imperio, y así se hacen temer y adorar”.
Antes disso houvera derrubamento de rochas fortes, colonizaçom castelá do monacato e envio de nobres díscolos à guerra de Granada.
Antonio de Nebrija quigera acompassar daquela o robustecimento hispano com a ediçom da sua Gramática. Na dedicatória à Rainha Isabel optou por silenciar a Galiza recentemente derrotada: “nuestra lengua siguió a los soldados que enviamos al extranjero para establecer nuestro dominio. Se extendió en Aragón, en Navarra, incluso en Italia (…). De esa manera, las piezas y pedazos de España se han reunido y ligado en un solo reino”. De novo o nosso país como naçom invisível.
Os autóctones que, ontem e hoje, pulam de Madrid pola demoliçom galega gabam-se da longa genealogia de servidores da metrópole, os mais deles pivotando por volta das grandes casas de Lemos e Monterrei. Umha figura excecional da mediana nobreza, Diego de Sarmento e Acunha, Conde de Gondomar, trouxo à tona a conduta real desta elite lamentável:
“Y sobre todo lo que no sabemos haga otra nación en el mundo, hace la nobleza de Galicia, pues todos los señores naturales sacan la subsistencia de sus vasallos y de su patria para illa gastar en las extrañas (…). De que tomó origen el proverbio de ‘Gallego traedor’ y nosotros mesmos por donaire añadimos el ‑i- algunas veces, diciendo ‘traidor’”.
Da sua visita ao Vale de Lemos, Góngora tirara versos ferentes contra a paisagem, as mulheres e as classes populares do país
Restituir o nosso papel exigia restituir a nossa memória. O Conde de Gondomar empenhava-se nessa angueira, mas com certa prevençom. Confessa em carta a Andrés de Losada e Prada (1614) que tem devotado horas a escolmar “heroicos feitos e façanhas galegos”; porém ‑acrescenta com ironia- “Deus me livre de que tal cousa veja ninguém, que condes há na Galiza a quem isto toca como colunas de aquele Reino”.
Livros que nom vem a luz
Como reaçom perante tanto escárnio, Pedro Fernández de Castro, senhor de Lemos, deu a lume ao afamado Búho Gallego, vindicaçom da Galiza no concerto peninsular. Na realidade tratou-se dumha resposta pontual num panorama de desleixo, de consentimento da lenda negra. As apologias galaicas criavam pó nas gavetas, como nos recorda o estudioso Emílio González López: “a falta de proteçom económica deixou sem imprensar obras fulcrais que se referem à história da própria nobreza”. Enquanto as imprensas de Mondonhedo e Monte Rei produziam ativamente, nom passárom de manuscritos os estudos de Vasco de Aponte, Pedro de Sarmiento ou Antonio de Barba y Figueroa. Desconhece-se por quê nunca recebêrom permissom para se editar As Galegadas e a Historia de Galicia, escritas no nosso idioma por Gregorio Lobariñas Feijoo. Também o humanista Cadaval Valadares de Souto Maior, formado em Portugal, viu gorada a sua obra Geografia General del Reino de Galicia. A falta de ajuda dos Concelhos fijo inviável a ediçom.
Oculta umha vedraia tradiçom institucional, domada a nobreza belicosa, o povo passava a ser o alvo da burla: habitante dum território isolado e inóspito, adoito comparado com as Índias. As visitas pastorais dos representantes da Espanha contrarreformista alumiam aquela visom das classes populares: “(os paroquianos da diocese de Lugo) em vida y costumbres diferenciaban poco de irracionales, viviendo en suma pobreza por la esterilidad de aquellas montañas”. O sacerdócio atravessava dificuldades no contacto com os indígenas, indecifráveis e enigmáticos: “lo que le hacia sufrir indeciblemente (a Don Juan de Lierno) era el carácter tardo y solapado de nuestros paisanos”.
O desprezo continua
O prejuízo chega até o presente: tivo até há bem pouco carta de oficialidade no dicionário da RAE, que recolhia a definiçom pejorativa de ‘galego’. Mesmo nestes tempos de correçom política e linguagem mol, o receio cola-se nos platôs televisivos e tertúlias radiofónicas. “Es gallego, en el sentido más peyorativo del término”, dixera Rosa Díez de Zapatero. Nos negócios das classes dominantes, mesmo sobre o galego mais desarraigado e hostil à sua terra paira umha observaçom vigiante. “Es menester, Padre San Ignacio, gran tento en tratar con gallegos”, escrevia um jesuíta ao seu líder no século XVII, quando esta ordem disputava com os franciscanos o controlo da hierarquia.
Cumpre reconhecer que o tópico recuou em extensom e virulência. Fijo‑o graças ao desenvolvimento dumha resistência nacional já veterana, e devido ao assentamento de certas elites cultivadas galeguistas, politicamente tatejas, mas prestigiosas e influentes.
A pregunta, porém, permanece, como permanece a própria imagem desprezativa e condescendente da Galiza. A resposta nom pode desvencelhar-se da grande quota de poder de dirigentes desnaturalizados, empoleirados nos resortes decisivos da vida do país. Projetárom o seu peso morto e o seu comportamento decadente sobre capas importantes do povo, estendendo a cultura da indolência e a deserçom.
Som herdeiros diretos daquela pseudodiligência nativa que tanto amolava Castelao: “ficou-nos umha moitedume de fidalgos da ínfima nobreza, impotentes e vaidosos, à frente dum povo burlado, abatido, roubado e sem esperança”. O passado ‑dixo Marx- “segue a oprimir como um pesadelo o cérebro dos vivos”.
- ¿De dónde eres hijo, que tanto imperio traes?
- De Viana del Prior.
- ¿Y adónde cae de la España?
- Cerca de Santiago de Galicia.
Sonrió desdeñoso Don Diego.
- ¡Gallego eres! ¿Por qué te dicen castellano?
El voluntario miró com reto al padre y a los hijos:
- ¡Porque no estoy cavando la tierra para que otros coman!
¡Porque tenía criados en mi casa! ¡Porque hago mi ley!
¡Porque cuando un soldado va por el mundo, ya
es de Castilla!
Valle-Inclán
La guerra carlista
Conta-nos Camilo Nogueira (Memória da naçom) que a Audiência da Galiza preludiou as instituiçons desenhadas para reinos excêntricos ou vice-reinados das Índias; durante os séculos XVI e XVII, apenas o 2% dos seus alcaldes maiores eram galegos; no século XVIII, a cifra de autóctones é testemunhal.
A Igreja, proprietária da metade do território do Reino na Idade Moderna, era também dirigida por alheios. Baixo o mandato de Felipe II, zénite do Império Hispano, só se regista um bispo galego na própria terra; os restantes trinta eram forâneos, na sua imensa maioria castelhanos.
Muitos anos depois, em plena construçom do Estado liberal, a hegemonia nom mudara. Quando Manuel Murguia contacta Salvador Golpe para estruturar o Comité Regionalista da Corunha (1890) o companheiro adverte‑o do árduo da tarefa: ‘o corpo social da cidade (refere-se às elites) está formado por umha maioria de estranhos à regiom’. Som os descendentes daqueles notáveis que, na época ilustrada, tanto alvoroçavam o Padre Sarmiento: os que se instalavam na nossa Terra para obterem dela os mais ‘pingües benefícios’ e marginalizavam o idioma; os que erguiam cenáculos para a reforma agrária sem saberem nada da vida do rural nem do espírito dos seus habitantes.
É difícil exagerar a relevância desta governança desnaturalizada na deformaçom e olvido da nossa identidade política; e porém, vamos dar a razom parcialmente aos nossos inimigos, pois o seu argumentário contém umha afirmaçom interessante: é doado esbararmos do nacionalismo ao vitimismo, e pensar que as nossas desgraças se originam em exclusiva numha conspiraçom chegada de longe. E sublinharmos o poderio do bloco oligárquico, poderia levar-nos a esquecer o papel de pequenas elites autóctones no processo desgaleguizador.
Na cima do poder subsidiário permanecérom, século após século, os mesmos apelidos. Ainda a primeiros da passada centúria, os principais contribuintes da Galiza eram os Lemos, os Andrade, os Monte Rei, os Riba d’Ávia ou Altamira; a sua imensa riqueza patrimonial alicerçava no foro e geria-se do exterior através de umha mesta rede intermediária.
García-Oro define com muita precisom o comportamento histórico das grandes casas nobres galego-espanholas: ‘cortesania extrema, extroversom, cargas económicas superiores às que aturam os seus morgados. Nom produz homens políticos nem mecenas de altos voos; permanente conflituosidade interna, com pleitos sobre morgados, dotes, arras e pensons que esgotárom as rendas. Transmitem à herança dívidas impossíveis de sanear’.
Semelhante continuidade registam os historiadores no âmbito do poder local: fidalgos, burocratas, mercadores e militares procediam, no século XVI, de estirpes de pequena nobreza empoleiradas graças à sua adesom henriquina na guerra civil trezentos anos antes. Nos agros e cidades cobrou corpo umha classe indolente e parasitária, sempre submissa perante o mando castelhano e alérgica a toda inovaçom económica trazida polos ‘fomentadores’.
Umha burguesia galeguista?
Com o sufrágio universal masculino nasce a política de massas e os movimentos populares, apoiados na palavra impressa, promovem a liderança intelectual. A brilhantez nacionalista nas artes e nas letras leva-nos por vezes a pensar que o âmbito da pequena burguesia ilustrada foi dirigido polo galeguismo; nada mais afastado da realidade. Os escritos dos nossos clássicos inçam-se de proclamas indignadas contra as classes letradas da ‘vila podre’: ‘cúrsis’, ‘desleigados’, ‘alheeiros’, assim eram definidos polos Castelao, os Risco ou os Cabanillas no alvor do século XX. Nos postos mais influentes da criaçom de opiniom situou-se sempre a intelectualidade obediente, fazendo tribuna dos mesmos cabeçalhos jornalísticos que hoje, cem anos depois, propagandeiam o poder.
Umha das suas figuras singulares, Emilia Pardo Bazán, ostentava a presidência da ‘Sociedad del Folklore Gallego’ enquanto reconhecia em privado nom ter a menor ideia das tradiçons do país. A mesma Pardo Bazán que esculcava qualquer movimento de Manuel Murguia e o seu contorno corunhês, advertindo que o separatismo podia abrolhar ‘como forma aguda do regionalismo lírico’.
A conduta é sempre a mesma: os intelectuais abandeiram um galeguismo de verniz e depois de derramarem umhas bágoas pola riqueza paisagística e gastronómica da Terra, passam a lançar os ataques mais ferozes contra qualquer tentativa de estruturar politicamente a consciência galega.
os intelectuais abandeiram um galeguismo de verniz mas atacam a estruturaçom política da conciência galega
No labor salientou, entre outros, Couceiro Freijomil, que punha no seu alvo toda iniciativa das Irmandades, por abrangente que for: nem a sua proposta de idioma, nem de simbologia, nem de estatuto autonómico devia ser considerada. Cumpria combater essas ‘agrupaçons políticas, de escassa importância e fundo antiespanhol”, que aliás estavam formadas por umha minoria dos escritores galegos.
Noriega Varela, que cuidadosamente refugava o papel de ‘Poeta da Raça’ que por parte de Nós se lhe oferecia, aproveitou os anos mais cruéis da pós-guerra para vincar numha ideia semelhante. Em 1940, ano em que ingressa na RAG, congratula-se pola desapariçom de aquele movimento que “afeara o idioma e impusera umha ilegítima insígnia regional”. Coincidia com Jaime Solá, veterano antinacionalista e diretor de ‘Vida Gallega’, que sugeria a pertinência de introduzir o galego na escola, “umha vez foram desterradas as torvas intençons do arredismo”.
Se é certo que as ideias dominantes de umha sociedade som as ideias da classe dominante, é doado imaginar a pegada desta elite lumpem na mentalidade da Galiza popular: na decantaçom ideológica e nos comportamentos que se associam a esta. Estes grandes vultos regionais divulgavam o abandono físico e espiritual e, segundo a tradiçom da fidalguia absentista de que procediam, predicárom com o exemplo. Captou-no agudamente Torrente Ballester em ‘Los gozos y las sombras’, pondo a prédica em boca do senhorito Juan Aldán: ‘los pintores y los poetas no hacen más que vociferar su amargura por las aldeas. Nuestra tierra se come a los hombres, los disuelve en el orballo, les quita la voluntad. Al que se queda allí se le cierran todos los caminos (…) Tienes que venirte a Madrid, Carlos. Esto es otra cosa. El aire frío espabila’.
Lembra Valentín Paz Andrade como na sua mocidade o sonho de qualquer promessa das letras era o sucesso mesetário; vidas de moços ambiciosos ‑de direitas ou de esquerdas- cruzavam o Berço sonhando com a promoçom espanhola. A excepçom, sublinha o pontevedrês, foi Castelao; mesmo antes da sua militância nacionalista, e reconhecido como figura das belas artes, demostrou um apego à Terra incomparável.
Resposta política
Pouco tempo depois, Vilar Ponte iria transformar esta posiçom sentimental em proposta política reja:
‘Ser Amigo da Fala supom espírito de sacr ifício, e todo o apostolado é sacrifício. O que se diga ou escreva em galego nom dará fama na Meseta. Por isso renegam do galego muitos regionalistas de pam-levar. Por isso o regionalismo galego, em galego, é a nossa bandeira de redençom; fronteira posta entre o mundo da farsa e o mundo da verdade. Os Amigos da Fala constituímos umha religiom de homens honrados, de homens enxebres, quer dizer, puros (…) Olhando para a Galiza redentora nos seus coraçons a todas horas’. Assim se apresentava A Nosa Terra, com o nacionalismo galego ‑agrupado baixo tal nome- a piques de nascer; de maneira simultânea os arredistas faziam-se ouvir em Cuba, para escândalo da diligência da Galiza emigrada, mui preocupada com que em Madrid nom nos consideravam ‘espanhóis de verdade’.
Se os escritos dos clássicos ainda nos iluminam e comovem é porque apontam ao cerne da nossa questom nacional, ao núcleo íntimo onde se dirime a vontade de Ser: a tensom que ainda se livra entre o desleixo e o cuidado, a deserçom e a responsabilidade, o cálculo e a estratégia.