Corria o ano 2000 quando a compositora, multi-instrumentista e cantareira Mercedes Peón publicava a sua estreia em solitário, Isué, toda umha labaçada sonora que abria um caminho praticamente intransitado para a música tradicional galega: o da música eletrónica. A prensa internacional nom tardou em desfazer-se em elogios com a artista de Oça dos Rios perante o que semelhava um novo ponto de referência para a evoluçom das músicas de raiz e a eletrónica durante o século XXI. As pandeiretas e as computadoras, o ajrú e o loop, a muinheira e a percussom sintetizada; aquilo prometia.

Mas este particular efeito 2000 tampouco se cumpriu e a relaçom entre a música tradicional galega e a eletrónica continua hoje quase tam fora da normalidade como há dezassete anos, até o ponto de que nom é fácil encontrar artistas que misturem ambos géneros, além da própria Peón. Um dos referentes neste âmbito é Nacho Muñoz, também conhecido como Madamme Cell, colaborador habitual da corunhesa desde os tempos do Isué e um dos principais responsáveis da sua deriva eletrónica.
Passos para a experimentaçom
O mesmo Nacho nom tivo muita relaçom com a música tradicional nos tempos da sua aprendizagem. Tardou três anos em descobrir que, no mesmo edifício em que assistia às aulas de eletrónica da Universidade Popular de Vigo, Carlos Núñez e Budiño aprendiam nas de música tradicional. Daquela tinha 17 anos e considera-se um privilegiado por ter adquirido essa formaçom numha Galiza onde, no terreno da eletrónica, a maioria é “autodidata”. A começos dos anos 90 Muñoz formou parte dos extintos Armeguín, numha época na qual “só conhecia Milladoiro”. Armeguín era um grupo de folk progressivo em que o viguês se considerava “a nota dissonante, mas entrava guai”. No seguinte projeto em que participou conheceria, desta vez si, Budiño. “Fol de Niu era umha fusom descarada, havia um percussionista brasileiro e tinha um estilo moi funkie”. A eletrónica tinha pouca presencia daquela, mas nom tardaria em chegar.
Muñoz nom lembra muito bem como começou a sua colaboraçom com Mercedes Peóm. Acha que foi despois de coincidir nuns concertos na praça da Quintana, em Compostela. A artista estava em plena criaçom do seu primeiro álbum, Isué, e nom atopava produtor. Muñoz deu-lhe o empurrom definitivo: “para que queres um produtor?”. E fôrom para adiante. “Mercedes puxo as cousas no seu sítio”, afirma. O músico entrou em contato com a percussom e os cantos populares galegos. Nos grupos anteriores nos quais participava primava a gaita. “Empolhei-me o cancioneiro de Dorothé Schubart inteiro, os doze volumes”, um trabalho de recompilaçom e clasificaçom dos cantos e instrumentos da suíça na Galiza que segundo ele “ainda está por reconhecer”.
A pesar do sucesso alcançado após o lançamento de Isué o seu produtor e arranjista coincide que outros projetos nessa linha ficárom muitas vezes “na anedota”
A pesar do sucesso alcançado após o lançamento de Isué o seu produtor e arranjista coincide que outros projetos nessa linha ficárom muitas vezes “na anedota”. Ilhas de experimentaçom com poucos anos de duraçom como foi a Eclética Ensemble, que ele também produziu. Nela participárom nomes de grande peso na música de raiz galega como Ugia Pedreira , Ramom Pinheiro ou Davide Salvado. Um collage que partia de vozes e instrumentos misturados com paisagens sonoras e fragmentos de milhares de improvisaçons.
À margem dos grupos com os que colaborou, Nacho Muñoz tem outra faceta como investigador do som na qual nom deixa de experimentar, Madame Cell. Umha via de exploraçom que na Galiza percorrérom projetos como o obradoiro instrumental do CGAC ou Escoitar.org. Nesta última iniciativa, nascida em 2006, conhecérom-se dous dos integrantes de Ulobit: Xoán-Xil López e Horacio González. Ambos decidírom começar pola sua conta umha colaboraçom que unia a eletrónica, da mao de López, com a vídeo-criaçom de González. Numha atuaçom na Gentalha do Pichel coincidírom com o sanfonista Ariel Ninas- nome artístico de Mauro Sanín- e pouco despois nasceu Ulobit.
A contemporaneidade da sanfona
“A sanfona é um sintetizador medieval”, explica Ninas. Para o músico a história deste instrumento do século XII tinha que desembocar inevitavelmente na música contemporânea de vanguarda. O artista indica que na Galiza “ainda está muito ligada à música popular, sobretudo aos cantos de cego”, mas o músico decidiu levar a sanfona além explorando todas as suas possibilidades. “Isto é algo que no país fazemos poucos, há pessoas que se autocensuram”, di. Sanfona, vídeo e o som sintetizado polo equipo de Xoán-Xil López som um todo cambiante nas suas atuaçons. Ulobit é, principalmente, improvisaçom, aproveitamento do espaço, também do erro. Os seus trabalhos demoram muito em ser traduzidos ao formato físico. Vickingland, lançado em 2016 e baseado no filme homónima de Xurxo Chirro, foi o primeiro. Tenhem tocado em ambientes muito diferentes e na casa botam em falta espaços onde desenvolver a sua proposta. “Ainda que para o que produzimos fisicamente nos movemos bastante”. Estivérom presentes o ano passado no festival WOS mas cham que fai fa

lta umha aposta maior em grupos que arriscam.
Horacio González considera que os promotores culturais na Galiza “subestimam” o público. Um exemplo: No Museu do Mar presentárom Vikingland perante a vizinhança de Bueu e aos senhores e senhoras “pareceu-lhes umha fricada, mas escuitárom-no e passárom-no pipa”, relata. O grupo explica que a sua relaçom com a música de raiz vem dada pola introduçom da sanfona, que ademais enriquece a posta em cena: “A medida que Mauro toca, o público pode ver como mudam as imagens e os sons sintetizados”. Atualmente trabalham com vídeos relacionados com a dança galega.
O Projeto Trepja
A mistura do vídeo com instrumentos tradicionais e sons sintetizados com computador atopámo-la também no desaparecido Projeto Trepja. Nasceu em 2008, ano em que recebeu o primeiro prémio do certame GZ Crea. Xandre Outeiro, integrante de Trepja, explica que daquela pensárom que o galardom seria um gram pulo para o coletivo. Mas todo ficou em “promessas vazias” e poucos anos depois decidírom separar-se. Formada por quinze integrantes, a agrupaçom unia a sua experiência no eido da música tradicional, os seus trabalhos de gravaçons de campo a informantes e informantas por toda a Galiza e a sua vontade de criar e experimentar. Xandre confessa que nos seus começos musicais era “totalmente anti música eletrónica”. Um “purista” que a pouco e pouco foi evolucionando da música tradicional que ele mesmo recolhia cara aos sons sintetizados. “Fum-me dando conta de que no tradicional todo eram patrons rítmicos repetitivos, esquemas rítmicos e mui potentes às vezes, outras vezes nom tanto”, explica.
Para Xandre fica muito trabalho sociocultural que fazer na Galiza. “A eletrónica segue-se associando muito com as raves”. Ao músico de Ponte Vedra resulta-lhe complicado atopar um espaço para presentar o seu trabalho em direto: “Às vezes sentes-te colado com pegamento, sujeito fixo no medio do programa”, lamenta. Após o remate de Trepja continua a fazer misturas na sua casa e segue aprendendo de forma autodidata. Quando decidírom dissolver-se esperavam que alguém recolhe-se “a testemunha da nossa ideia, deste conceito de fazer as cousas”. Mas nom foi assim, ou nom da forma que aguardavam.
O coletivo sugeria num dos seus primeiros concertos a existência de quatro etapas da música tradicional, que para Xandre “continuam vigentes”. Umha primeira em que a tradiçom formava parte do dia a dia, umha segunda em que foi subida aos cenários, umha terceira de recreaçons históricas e umha maior investigaçom. A quarta? Umha última etapa em que totalmente liberados do que podíamos ou nom podíamos fazer, sendo conscientes do que fazíamos, podíamos fazer o que quigéramos. E a nossa proposta era aquela”, assegura. O músico aposta em manter abertas duas vias no nosso património musical: umha que transmita “o que chegou até nós, a tradiçom tal é como a recebemos”, e outra que contribua para a sua evoluçom “misturando e explorando”. “Ambas som necessárias e complementarias”, conclui. Como dixo o escritor Vicente Aleixandre, tradiçom e revoluçom som palavras idênticas.
Os artistas coincidem em que existem barreiras ideológicas que separam o tradicional da eletrónica, ainda que a nossa gente maior nom semelha partilhar esses preconceitos, como demonstra a experiência do músico Nacho Muñoz com as mulheres de Valadares.
No ano 2008 o desaparecido Projeto Trepja explicava, numha das suas atuaçons, a existência de quatro etapas na música tradicional galega. Na quarta e última, a música popular encontra-se com outras influências, outros géneros musicais e novas vias de experimentaçom. As e os artistas que integrárom Trepja pugérom-no em prática: vídeo, sons sintetizados, pandeiretadas, baile, vozes… Todo se misturava em cada umha das suas atuaçons, que podiam ter lugar tanto numha praça de abastos como acima dum cenário. Trás eles surdírom na Galiza novas propostas onde eletrónica e música de raiz se entrelaçavam.

Tradiçom, “dub” e “hip-hop”
Umha delas é protagonizada por Os Grú, o duo integrado por Vanesa Castro e Iñaki López, umha galega e um valenciano que moram na paróquia de Santa Maria de Vilachá, em Monfero. Ali realizam os seus ecléticos projetos artísticos através da sua produtora, Fur Alle Falle, e organizam jornadas sobre temáticas como o decrescimento através da associaçom Rural Contemporânea, entre outras muitas cousas. Umha dessas iniciativas artísticas foi Ai Ruada, um disco-homenagem à festa popular, pública e auto-gerida das nossas idosas e idosos, publicado em 2014. Nele, as gravaçons que o etnomusicólogo Alan Lomax realizou na Galiza no 1952 misturam-se com estilos coma o dub e o hip-hop e artistas como As Grecas ou Manuel de Falla. Mas Ai Ruada nom fica numha simples homenagem, também é umha declaraçom de intençons. “O lazer nas aldeias deve recuperar a ruada. Viver na aldeia deve oferecer outros espaços comuns para a festa, além dos bares, as verbenas do patrom ou as romarias. Reivindicamos a ruada como bem comum”, explicam no seu Bandcamp.
Vanesa indica que a sua intençom era “valorizar o tradicional através dum ponto de vista inovador, refrigerante, para mantê-lo vivo”. “Ai Ruada era dizer: ‘ei, que podemos fazer música de baile, umha festa na rua, como umha rave, mas com a tradiçom do sítio onde vivemos”, afirma Iñaki. Os Grú criticam o purismo do folclore e defendem que a música eletrónica pode achegar umha nova gama de possibilidades. “Se a gente de fai três séculos na Galiza tivesse estes instrumentos, teria-os integrado na forma de fazer música, mas agora parece que misturar instrumentos novos com o “antigo” é como ir em contra do puro, um sacrilégio, dim. Iñaki também lamenta a reticência por parte doutros estilos e usar elementos do tradicional, situaçom que considera provocada pola herdança cultural do franquismo, de “afogar o nosso”, e ao temor dos artistas a fazer misturas por medo a que a gente nom as entenda.
As nossas e os nossos idosos nom semelham partilhar estes temores, e assim o demonstra a experiência de Nacho Muñoz com as mulheres do Banco de Tempo de Valadares. O produtor e arranjador de artistas como Mercedes Peón ou Budiño colaborou com as cantareiras da paróquia. Neste experimento chamado Verbenas periféricas, criava com elas umha série de peças que misturavam a eletrónica com as suas cançons preferidas. Baixo o nome Orquestra de Experimental do Banco do Tempo realizárom umha atuaçom no auditório da paróquia. As senhoras desfrutárom no processo, ao que se aproximárom sem preconceitos. Ao público encantou-lhe. “Amavam-nos”, explica o próprio Muñoz, que tem levado sintetizadores ao seráns que se faziam em Redondela. Aí, assegura, topou realmente a tradiçom, mas as e os músicos do nosso país nom sempre o tenhem tam claro.
Pandeiretas e música electrónica
Um dos que sim o tivo claro foi Ángel Marcos Pardal, Pandoé, ele decidiu começar umha carreira em solitário. Este artista emergente no campo da eletrónica destaca por integrar percussons e cantos tradicionais galegos ‑cantados e tocados por ele próprio- nas suas composiçons. O músico padronês tivo que aguardar e criar este projeto para incorporar sons da Galiza ao seu repertório já que nos dous últimos grupos que integrou, Músculo! e Defrendous, nom lhe deixárom fazê-lo, umha decisom que ele considera “ideológica” e nom musical. “Se lhes digesse de arriscar mais, mas com um som de África ou da Argentina, diriam que isso é legal, mas com pandeiretas era como ‘venha, homem’. Acho que há bastante complexo com isso, é o que sinto no meu entorno musical”, relata.
Para Pandoé, as pandeiretas achegam “texturas naturais” que contrastam com o sintético da música eletrónica
Para Pandoé, as pandeiretas achegam “texturas naturais” que contrastam com o sintético da música eletrónica. “A pandeireta é muito rítmica mas ao mesmo tempo achega umha sujeira, dá um toque étnico, muito arraigado”, explica. Desta mistura nascêrom o seu primeiro EP Sintética Natural, e o seu disco de debute, Coriqui, estreado o passado 10 de abril, trabalhos pensados em boa medida para as pistas de baile. A sua trajetória parte dum trabalho de investigaçom pessoal, já que apesar da sua formaçom com bateria nunca tocara a percussom tradicional, um mundo “desconhecido” para ele. A sua mulher, gaiteira e percussionista da Fonsagrada, foi mui importante neste caminho de aprendizagem que o levou a experimentar com instrumentos como cabaças ou pauzinhos e encaixe. O artista considera “mui positiva” a sua experiência e fai autocrítica: “Acho que temos essa imagem na nossa cabeça de que a música popular galega som os três de sempre e nom há mais nada, nom nos fazemos à ideia de como encaixar todo isso neste mundo contemporâneo”. Dentro deste processo passou de empregar referências latino-americanas como a cúmbia a centrar-se na música galega, a senti-lo como próprio, “é como descobrir realmente quem és”, di.
O “chiptune”
Outro músico que topou barreiras no seu caminho é Marcos Aboal, mais conhecido como Pulpiño Viascón, o máximo exponente do Chiptune na Galiza. Esta música eletrónica, popularizada polos videojogos arcade de 80, vive na atualidade num autêntico ressurgimento graças a Internet e mesmo consegue colar-se de forma habitual na musica de massas. O Chiptune utiliza instrumentos como Game Boys para compor, recrear bandas sonoras de filmes ou inclusive fazer versons dalguns dos melhores discos da história. Todo em 8 bits, Bravúboy, entre outras cousas, também cria peças eletro-tradicionais como a Muinheira de Nintendo.
“Aqui há muito purismo”, afirma o de Viascom, multi-instrumentista e integrante dos Diplomáticos de Monte Alto e outra cheia de projetos artísticos. Pulpiño explica que a gente “só quer fazer folk ou só quer fazer rock, nom misturá-los”. Ainda que defende a liberdade das pessoas na hora de criar, Aboal lamenta esta situaçom, já que considera que “os novos sabores estám na mistura”. Esta é, para ele, umha forma de “chegar à gente”, sobretodo, “a públicos mais novos”. O problema está, segundo o músico, em que “na Galiza estamos fechados a isso, salvo alguns exemplos”. E voltamos a falar de Mercedes Peón, também de Budiño.
A Aboal o da mistura vem-lhe de criança. “Quando estava em Viascom, na saída da missa, o gaiteiro Ricardo Portela tocava o Pasodoble de San Benito. Depois íamos à rapa das bestas com Portela, eu já tinha umha Game Boy no Carro”. É de onde vem o estilo do seu álbum Bravúboy, disponível em Soundcloud, “de misturar os temas tradicionais com 8 bits”.
Galician Chiptunes nom é o primeiro projeto no que Pulpiño Viascón mistura eletrónica e música popular, antes já formou parte de Bonovo. Neste grupo, nado em 2007, participavam Óscar Fernandes, dos Cem-pés, à sanfona, e Roberto Gandral ao acordeóm. Todo misturado com a bateria eletrónica de Viascom. Bonovo foi umha aventura curta porque, segundo Aboal, “a gente nom nos entendeu”. “O problema que temos”, coincide Pulpiño com outras e outros músicos “é que na Galiza há, mais ou menos, um mercado folk, mas mais nada”.
Marcos Aboal: "na Galiza há, mais ou menos, um mercado de música folk, mas mais nada”
Aprendendo a experimentar
A pesar das dificuldades no percurso, aquelas e aqueles que decidírom aventurar-se na exploraçom nom caem no pessimismo. Para Xandre Outeiro, músico que participou no Projeto Trepja, estas ideias “tardam em calhar”. Incluir a experimentaçom no ensino é umha via para atingi-lo. Xandre é um mestre em Ponte-Vedra, assim como outros ex-membros da Trepja. Na escola de Trepja oferecem-se atualmente aulas de experimentaçom, umha vez rematados os três primeiros níveis de música tradicional, servem para “sentar as bases”.
O músico Ariel Ninas, sanfonista e membro do grupo de música drone Ulobit também é mestre de harmónica na Central Folque de Santiago de Compostela. O mesmo Nacho Muñoz dou aulas na Aula Infantil da Folque em Ponte-Vedra. Nenas e nenos recebiam nela aulas de percussom, baile e canto tradicional. Depois estava Nacho. “Eu tinha o laboratório de sons, era um pouco o recreio”, relata. Partiam das estruturas de melodias populares que logo esmiuçavam, e com esses fragmentos começavam a jogar. “Era todo experimentar e criar”. A rapazada participava depois em concertos que eles ajudavam a produzir, desde a música até a iluminaçom.
Dezassete anos depois do Isué, a tradiçom galega nom conseguiu trespassar os preconceitos de próprios e alheios para penetrar no mundo da eletrónica, mas o caminho iniciado ‑ou, quando menos, visibilizado- no 2000 segue aberto e há motivos para o optimismo. Viascón lembra que há 30 anos quase ninguém se atrevia a misturar umha bateria com umha gaita, algo que hoje está completamente normalizado. Se o ser humano se atreve a sonhar com androides e ovelhas elétricas, por que nom com pandeiretas?