Xácia Ceive é a organizadora do espaço e projeto Sete Outeiros, um refugio e retiro na natureza da Ribeira Sacra para pessoas trans e queer (LGBTIA). Gael Papel é umha pessoa nom-binária que se nomeia em neutro —pronome eli—. É portuguesa e leva dous anos morando em Compostela, militando nos coletivos Amizando e Ninguén sen Coidados. Falam-nos do primeiro Tranzine de Sete Outeiros, uma colaboraçom literária e artística que nasce num momento em que o coletivo trans também sofre discriminaçom dentro do feminismo, e que busca abrir os olhos a todas as pessoas que o leiam.
Quando e como surge o Tranzine de Sete Outeiros?
X: O coletivo trans está num momento de exigir dignidade em igualdade, e para chegar a estas alturas —que nos restauraria a um espaço de plena dignidade na nossa cultura— fai falta muito trabalho elaborando discursos e entendimentos, compartindo as nossas experiências e fazendo um esforço pedagógico. Por isso nasceu o nosso Tranzine.
Polo primeiro numero as contribuidoras estavam preparando os textos no inverno, figem a maqueta na primavera, mas a covid-19 atrasou a publicaçom e nom conseguimos imprimir até depois da quarentena.
Por que decidistes dedicar este número à língua, e particularmente à linguagem nom-binária (NB)?
X: O facto de estarmos começando a ter mais espaço cultural para interrogar, investigar e experimentar com o género está causando um aumento na quantidade de pessoas querendo experimentar com a neutralidade linguística para melhor descrever as suas vidas. Na Galiza, estando linguisticamente dominada polo castelhano, isto implica que, se nom fazemos um esforço intencional, vamos comprar todas as nossas opçons linguísticas neutrais de Madrid, em vez de interrogar a lógica própria do nossa idioma para neutralizar com modos próprios. Nom me auto defino com regularidade nom-binária, e por isso deixei a voz do tranzine a outras pessoas.
Para bem capturar a realidade atual da nossa língua, convidei um ativista da nossa linguagem, Dani Amarelo, umhe artista de Lisboa, Gael Papel, que já poderia chamar Galiza um segundo lar, e umha pessoa de Madri, Mirzam Jay Lokabrenna, quem organizou o primeiro encontro ibérico nom-binário aqui mesmo em Sete Outeiros. Mirzam mora em Compostela e está no processo de aprender galego. Assim temos as principais possíveis influências na exploraçom de linguagem neutra em galego.
“As existências nombinárias som em si mesmas formas de resistência ao sistema cisheteropatriarcal, porque desafiam os fundamentos básicos em que ele assenta”
É a linguagem nom-binária chave para rematar com o cisheteropatriarcado?
G: É uma pergunta moi complicada, mas acho que sim. As existências NB som em si mesmas formas de resistência ao sistema cisheteropatriarcal, porque desafiam os fundamentos básicos em que ele assenta. A linguagem NB é um sintoma disso. Pondo‑o um pouco mais em contexto, no nosso universo ocidental som permitidos dous géneros e a cada um deles associam-se características que pretendem justificar desigualdades e discriminaçons, e manter sistemas de privilégios. Mas a decisom de valorar ou desprezar determinadas características é umha decisom política, umha construçom social. E este sistema de manutençom das desigualdades nutre-se de que nom sejamos conscientes disso, de que pensemos que as normas de género som algo inato ao que nom podemos escapar, de que pensemos que esses estereótipos som o desejável e o “normal”, e de que escapar à “normalidade” é terrível. As moças gostam do rosa, os moços do azul; as moças som sensíveis e cuidadoras, os moços agressivos e valentes, as moças levam cabelo longo e gostam dos moços, os moços levan o cabelo curto e namoram de moças com o cabelo longo, etc… Mas que passa quando se começam a transgredir estas normas? O nom-binarismo é muito mais do que umha terceira identidade de género: masculino, feminino, outro.
Quando Monique Wittig dizia que as bolheras nom eram mulheres, já estava, na minha opiniom, abrindo umha fenda no binarismo do sistema sexo-género. Para mim, o nom-binarismo é a recusa dos dogmas patriarcais e colonialistas que automaticamente nos colocam num extremo ou noutro da vida. Cada mandato de género que se quebra é uma forma de nom-binarismo (ainda que nom nos identifiquemos com umha identidade NB) e é um passo cara a fora do sistema cisheteropatriarcal. E o que é mais rompedor que umha linguagem que esse sistema nom contempla?
Mirzam Jay fala na sua entrevista sobre o duro que pode ser conseguir que respeitem a identidade própria. A linguagem NB pode ser umha soluçom a longo prazo ao binarismo?
G: Penso que é impossível ser percibide exatamente como somos ou nos sentimos e que esse nom é o principal problema porque ten mais a ver com as expetativas des outres que com a nossa identidade. Na verdade, nom pedimos ninguém que entenda, pedimos apenas que se respeite. Podemos comunicar alguém como queremos ser tratades mas nom podemos controlar como essa pessoa nos vê. E nom estou segure de que isso seja o mais importante. Por exemplo: Eu som uma pessoa NB que se relaciona sexo-afetivamente quase sempre com mulheres lésbicas/bolheras. Que elas se considerem bolheras nom fai de mim umha mulher lésbica. E por outro lado, que eu seja umha pessoa NB e nom umha mulher, nom fai que elas sejam menos bolheras. A linguagem NB serve para dirigir-se às pessoas que a utilizem para referir-se a si mesmas, independentemente da interpretaçom que o nosso cérebro poida fazer delas. E acho que se a utilizamos, pouco a pouco acostumaremos a ver com olhos mais fluidos.
No tranzine falades brevemente do “desprezo” também dentro do feminismo ao que se consideram qualidades femininas, pensades que isto é assim?
X: Acho que isto está em parte ligado a umha discussom filosófica nos feminismos. Eu nom som abolicionista de género. Som abolicionista de opressons e de todos os elementos obrigatórios no nosso sistema de sexo-género. Mas, há nos que veem todos as expressons de género, socialmente vistas como ‘femininas’, como parte do problema, parte da imposiçom. Estes argumentos estám aparecendo muitas vezes, especialmente contra mulheres trans. Há algo de paternalista nesta lógica. Acho este desprezo como umha nova pressom que cria um novo limite à livre expressom de mulheres, pessoas nom-binárias, e no fim, a homens também. Penso que enquanto mulheres, já experimentamos pressons enormes na nossa expressom de género, a ultima cousa que há de fazer o feminismo é acrescentar novas pressons. A questom de o que fazer com o género, aboliçom, liberdade, etc., é enorme. Se calhar mereceria encher o numero dous do tranzine. Enquanto estamos a navegar sistemas complexos, com níveis de opressom e desequilíbrios de poder, sempre estou em favor de soluçons e linguagem que deixam as pessoas menos privilegiadas navegar, expressar e explorar estes sistemas com máxima liberdade.
G: Neste tema nom acabo de ter a mesma opiniom que Xácia, ainda que em parte sim coincidamos. Da minha experiência nunca sentim um desprezo pola feminidade, ainda que me pergunte, ao final, a que nos estamos a referir. Se nos estamos a referir aos estereótipos de feminidade —como a tendência para cuidar, a sensibilidade ou pôr-se saia— entom penso que o que existe nalguns universos (trans)feministas nom é desprezo, senom o desejo de que essa nom seja a única opçom, e de que nom seja um requisito indispensável para ser, o que quer que isso queira dicir, femenina/e/o. Por exemplo, é comum esperar que uma mulher trans tente feminizar-se o mais possível segundo o padrom cultural de feminidade. Que se ponha saias, que se maquilhe e que seja hetero. Noutras palavras, a “feminidade obrigatória” é uma condiçom para mais ou menos poder habitar o sistema binário com um mínimo de tranquilidade. O tam sobre-valorado passing que nos permite sobreviver neste sistema cisheterohostil. E aqui estou de acordo com Xácia, nom é justo, deveríamos poder ser livres.
“O coletivo ‘trans’ está num momento de exigir dignidade em igualdade”
-Xácia, a palavra women tem para ti umhas conotaçoms distintas que a palavra mulher. Muda a nossa perspetiva do mundo segundo o idioma que usemos? Nas línguas onde nom há género gramatical marcado os géneros fluem mais?
G: Cada idioma que falamos ou entendemos amplia a maneira como vemos o mundo e trae outras formas de comunicar-nos que suponhem um entendimento distinto da nossa contorna. Penso que nos idiomas onde o género nom está gramaticalmente (tam) marcado, a inserçom da linguagem neutra é mais simples, e quiçá o processo mental através do que perceberemos o género além do binário, seja mais rápido.
X: Eu estou convencida que entre a ampla heterogeneidade das nossas sociedades, temos de todo. Pessoas que precisam a liberdade para fluir entre categorias fixas, pessoas que valoram a estabilidade de categories para o uso pessoal —nom para ditar as identidades doutras, claro—. Há pessoas que necessitam as palavras homem e mulher, pessoas que necessitam outros espaços de sexo/género, pessoas que querem comunicar, através dumha expressom de género que encaixem num grupo ou outro, pessoas que exigem, corretamente, que a sua expressom de género nom implica estar alocada a um grupo ou outro. Penso que o nosso reto é tentar fazer espaço, linguisticamente e culturalmente, para todas estas necessidades.
O uso do neutro pode chegar a ser um problema para línguas minorizadas como a nossa?
X: Sei que existe umha crítica de linguagem neutra no galego, que sigue estas linhas. Convidei Dani Amarelo escrever desta tema no tranzine, porque ele poderia explorar estes dificuldades desde umha posiçom de sensibilidade, entendendo melhor as necessidades do coletivo nom-binário, que outras ativistas linguísticas. E, falando com Dani nos meses depois, ele lamentou o facto de nom encontrar exatamente o tom que queria no tranzine, e queria mostrar mais auto-conhecimento do privilegio de nom sentir a necessidade de empregar linguagem neutra diária cerca si mesmo. Também, afirma que a linguagem neutra nom presenta um “problema”, só é que pode ser um desafio maior para umha língua minorizada.
Como navegamos estas varias necessidades? Penso que os textos no tranzine nom tentaram dar respostas finais a estas perguntas complicadas. Pintárom o espaço em que podemos continuar a explorar, negociando, e co-criando linguisticamente.
G: Na minha opiniom o uso do neutro nom altera muito a situaçom. Esta linguagem é mui pouco utilizada, praticamente nom é reconhecida e menos ainda validada —o que resulta na invisibilizaçom das pessoas que se identificam com ela e que a utilizam—. Quem a usa necessita dela urgentemente. Acho que a linguagem NB irá mudando e adaptando às necessidades reais de quem a utiliza e ao idioma que essas pessoas falam, tornando‑o mais próprio e mais auténtico, porque também o serám es sues falantes.
Entom, achades que se normalizará rápido o uso do neutro nas línguas ou resta muito por fazer?
G: Som só uma pessoa NB que nom conhece o futuro (risos). Mas penso que ficará sempre muito por fazer e que a maneira como nos expressamos —sintoma de como vemos o mundo— está mui marcada nom só por um sistema cis, hetero, patriarcal e binarista, senom também por mandatos coloniais, racistas, capacitistas, especistas… e que temos muito por desconstruir.
Algumha outra cousa que consideres de interesse comentar?
X: Se alguém quer conseguir umha copia deste numero, podem mandar um correio a: ola@seteouteiros.gal. Cobramos entre dous e cinco euros, dependendo da economia da pessoa. Também pode apoiar Sete Outeiros em teaming.net/seteouteiros por só um euro ao mês. Enviaremos umha cópia em troca!