Em 1979, quando o sandinismo toma Nicarágua, o Ministério de Cultura publica o primeiro livro do governo revolucionário: Cantos de amor y guerra, um volume de poesia cujos versos correram entre os guerrilheiros. O autor era Gaspar García Laviana, sacerdote asturiano que morrera em combate um ano antes na frente sul.
Poeta foi também, até a sua morte com 95 anos, Ernesto Cardenal. Figura central da literatura em castelhano da segunda metade do XX, publicou quase cinquenta livros, fundou editoras ou antologou a poesia de línguas sem escrita. Bebendo do modernismo norte-americano, a sua obra quis ser clara sem deixar por isso de ser forte e os seus versos são sempre de amor, sem distinguir entre o lírico e o revolucionário: Me contaron que estabas enamorada de otro / y entonces me fui a mi cuarto / y escribí ese artículo contra el Gobierno / por el que estoy preso.
Mas Cardenal entendera também a religião como uma ferramenta de amor. Como sacerdote, fundou em 1965 uma comunidade primitivista no arquipélago de Solentiname, que se converteria numa das capitais da teologia da libertação que acendeu as igrejas da América Latina. Ali, campesinhos e marinheiros pintavam, liam poemas e discutiam o evangelho em troques de receber sermões. O acesso à cultura e à reflexão levaram muitos deles a entrar na Frente Sandinista de Libertação Nacional, e o ditador Anastasio Somoza destruiu a comunidade em 1977.
A sua obra quis ser clara sem deixar por isso de ser forte e os seus versos são sempre de amor, sem distinguir entre o lírico e o revolucionário.
Cardenal dirigiu de 1979 a 1987 o único Ministério de Cultura da história de Nicarágua, lembrado pola Cruzada Nacional de Alfabetização que mobilizou miles de voluntários e reduziu o analfabetismo do país de 50% a menos de 13%, educando não só em castelhano, senão também em inglês, miskito e sumo. No prólogo ao livro de García Laviana, Cardenal anunciava: “Estes poemas vão lê-los os campesinhos de Nicarágua que ainda não podem ler mas poderão aginha”.
O momento mais icónico do seu mandato ministerial é, contudo, a receção a João Paulo II em 1983. Num gesto que o tempo virou mais de reivindicação que de submissão, Cardenal ajoelhou-se diante do papa e este rifou-lhe em público, exigindo-lhe “reconciliar-se com a Igreja”. A imagem simboliza duas visões da religião: a progressista da teologia da libertação e a neoliberal. Ao dia seguinte, enquanto Wojtyła realizava um duro discurso contra o sandinismo, a multidão calava‑o berrando “Entre cristianismo e revolução não há contradição”. O papa suspenderia Cardenal do exercício do sacerdócio, suspensão que não se levantou até 2014.
Cardenal dirigiu de 1979 a 1987 o único Ministério de Cultura da história de Nicarágua, lembrado pola Cruzada Nacional de Alfabetização que mobilizou miles de voluntários e reduziu o analfabetismo do país de 50% a menos de 13%, educando não só em castelhano, senão também em inglês, miskito e sumo.
Tentaram tirar-lhe também o nome de sandinista. A rutura com Daniel Ortega, logo de este tomar em 1994 o poder total do FSLN e de iniciar uma política “centrista” baixo suspeitas de corrupção, valeu-lhe uma multa de 800.000 dólares em defesa da propriedade privada dalguns prédios de Solentiname. Seguidores de Ortega, no meio da crise do governo, invadiram o passado 4 de março o funeral de Cardenal para atirar pedras à caixa e chamá-lo traidor.
Na sua vida foi incessante a luita polo amor contra as hierarquias, forem estas somozistas, católicas ou orteguianas. Na sua memória, bem podemos recitar estes seus versos: Bienaventurado el hombre que no sigue las consignas del Partido / ni asiste a sus mítines / ni se sienta en la mesa con los gangsters / ni con los Generales en el Consejo de Guerra / Bienaventurado el hombre que no espía a su hermano / ni delata a su compañero de colegio /Bienaventurado el hombre que no lee los anuncios comerciales / ni escucha sus radios / ni cree en sus slogans. // Será como un árbol plantado junto a una fuente.