O mesmo dia em que era proclamada a segunda República espanhola, o presidente provisório do governo assinava um decreto de amnistia para todos os delitos políticos, sociais e de imprensa. Nas mudanças de regime, a amnistia é, para além de uma medida humanitária, mais uma forma de deslegitimar o regime precedente: quando são esquecidas oficialmente as penas impostas segundo o código penal anterior, está a ser declarada a injustiça do regime superado. Por isso, após a morte do ditador em 1975, certos setores sociais começam a exigir publicamente no Estado espanhol uma amnistia, cuja negociação e amplitude converter-se‑á num dos temas principais da agenda política do momento.
Assim, diversos coletivos iniciam a mobilização: das organizações políticas até os presos ditos sociais e os seus familiares. Para a altura de 1975, as prisões espanholas estavam ateigadas de militantes antifranquistas, a maioria dos quais estavam organizados e sujeitos a uma disciplina orgânica (PCE, CCOO, ETA, FRAP, entre outras organizações). Ao parecer, as relações entre presos políticos e presos comuns não foi sempre fluída e baseada na confiança mútua. Para muitos presos políticos, os presos comuns eram lumpemproletariado. Segundo recolhe Ángel Suárez (na verdade, pseudónimo de uma equipa investigadora mais alargada) no seu Libro blanco sobre las cárceles franquistas (1976), um grupo de presos de ETA chegou a escrever: “quer-se que convivamos com os presos comuns […], introduzir-nos no seu ambiente, com frequência literalmente repugnante, onde reina a mais completa degradação moral e onde o mais mínimo critério ético está ausente”.
Após a morte do ditador, certos setores sociais começam a exigir no Estado espanhol uma amnistia, cuja negociação e amplitude converterse‑á num dos temas principais da agenda política do momento
Esta rejeição era partilhada pelo regime, que através da conhecida como Gandula –a Ley de Vagos y Maleantes, aprovada em 1933 durante o biénio radical-cedista da segunda República espanhola– e da sua continuadora Ley sobre peligrosidad y rehabilitación social (1970) acostumava encarcerar pessoas que mantinham comportamentos considerados como antissociais, em particular pessoas homossexuais e transexuais, mas também todo tipo de coletivos marginalizados. Esse era, para a altura, um grupo numeroso dentro da população carcerária. A Fiscalía espanhola, no seu relatório de 1975 recolhe que foram emitidas no ano anterior um total de 2.839 sentenças condenatórias em aplicação dessa legislação, num momento em que a população carcerária abrangia 14.764 pessoas.
O regime franquista costumava encarcerar pessoas de comportamentos considerados antissociais, como homossexuais, transexuais e todo tipo de coletivos marginalizados que, na altura, eram um grupo numeroso dentro da população carcerária
Apesar da sua situação, a tomada de consciência dos presos sociais foi um facto. Como explica César Lorenzo em Cárceles en llamas, livro publicado em 2013 pela editora catalã Virus: “as ferramentas conceptuais da teoria anarquista do direito, reforçadas pelas contribuições dos autores soixante-huitards críticos com as instituições de controlo social –com Foucault à cabeça–, servir-lhes‑á para dar forma a uma interpretação da delinquência como o produto de um sistema político e social– a ditadura franquista e a sociedade de consumo– injusto e repressivo, que condena amplias capas da população à miséria, para as recluir depois dentro das prisões mediante leis desproporcionalmente severas”. Essa tomada de consciência verá-se traduzida em constantes protestos que, em forma de motins carcerários, auto-lesões e greves de fome, aumentam durante esses anos. Uns protestos que vão acontecer em um momento em que, como têm referido várias e vários autores, a mobilização social era considerável: segundo os dados do Ministério de Trabalho, só em 1976 tiveram lugar 1.586 greves, em que participaram 3,5 milhões de trabalhadores e trabalhadoras; as organizações políticas também se multiplicavam e crescia mesmo a violência política.
Em este contexto, nasce em janeiro de 1977 a Coordinadora de Presos en Lucha, COPEL, cuja razão de ser era, primeiramente, reivindicar uma amnistia geral que abrangesse todas as pessoas presas, com independência da natureza do seu delito. Em esta luta os militantes da COPEL ficarão praticamente sós: nem as organizações políticas antifranquistas, nem os poderes públicos foram sensíveis às suas reivindicações. Apenas os seus familiares e algum coletivo libertário manteve a solidariedade com a COPEL em este aspeto.
Assim se expressava o editorial do jornal El País de 20 de julho de 1977: “A COPEL pede amnistia e uma mudança radical no sistema penitenciário. Ainda que não seja agradável dizê-lo, é evidente que o paralelismo entre a amnistia política e uma eventual amnistia para delitos sociais e indefensível. Porque os dois grandes supostos que contempla a amnistia não se dão, ou dão-se em grau mínimo, nas condenas nascidas da aplicação do Código Penal ordinário. Por um lado, a amnistia promulgada no passado mês de julho não faz mais do que projetar cara atrás os efeitos da ‘despenalização’ de condutas tais como a afiliação a partidos políticos e a propaganda das suas siglas e dos seus programas”.
Depois de negar a oportunidade de estender à totalidade do âmbito da “delinquência social” a despenalização de condutas e a conseguinte amnistia, e de reduzir essa possibilidade a um número limitado de delitos como o adultério, a propaganda de contracetivos e algumas tipologias do aborto, o editorial continuava da seguinte maneira: “Também não pode ser estendido aos delitos ordinários o segundo suposto que cobre a amnistia. Trata-se da amnistia de condutas que continuam sendo delituosas (como o roubo ou o homicídio), mas que foram motivadas por circunstâncias políticas agora inexistentes. No caso de homens que mataram ou assaltaram bancos durante a ditadura por razões políticas, presume-se que a mudança de sistema político fez desaparecer o que pudesse fazê-los reincidir nessa conduta delituosa. E é evidente que as transformações políticas não modificam suficientemente uma sociedade como para presumir, em termos gerais, que desapareceram as causas que conduzem a quebrantar a lei por motivos privados”.
A COPEL exigia modificar o regulamento penitenciário vigente, de 1956, objeto de crítica pelo autoritarismo, os abusos frequentes, o papel da igreja católica e a dureza da vida nas prisões
Em segundo lugar, além da amnistia, as reivindicações da COPEL visavam à exigência de modificar o regulamento penitenciário de 1956, vigente ainda naquele momento histórico. Tratava-se de uma norma ditada num momento de abertura do regime, mas que na altura era objeto de crítica por parte das pessoas presas, pelo seu autoritarismo, pelos abusos frequentes, pelo papel primordial que jogava a igreja católica e pela dureza da vida nas prisões. Neste ponto, o seu sucesso foi incontestável: em setembro de 1979 era promulgada a primeira lei orgânica do Estado espanhol, a Lei Orgánica Penitenciaria, que recolhia uma grande parte das reivindicações da COPEL.
A história da COPEL é uma história esquecida e mesmo maltratada pelos coletivos que reivindicam a memória democrática. Contudo, qualquer pessoa que se considere democrata está em dívida com os seus militantes e com os seus sacrifícios.