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Manifestaçom 'Casas para viver', em Lisboa.

Vida Justa: Estamos juntas, estamos fortes 

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Manifestaçom 'Casas para viver', em Lisboa.
Manifestaçom ‘Casas para vi­ver’, em Lisboa. | esquerda.net

Foi com o nome de Vida Justa que uma ma­ni­fes­ta­ção con­tra o au­mento do custo de vida jun­tou mais de 10 mil pes­soas, no cen­tro de Lisboa, no dia 25 de Fevereiro. Entretanto, trans­for­mou-se num mo­vi­mento po­lí­tico das pes­soas dos bair­ros das pe­ri­fe­rias da ca­pi­tal por­tu­guesa, em luta pela jus­tiça so­cial, pela li­mi­ta­ção dos pre­ços de bens es­sen­ci­ais, por me­lho­res sa­lá­rios e pelo di­reito à habitação. 

Em Portugal, os bai­xos sa­lá­rios de grande parte da po­pu­la­ção – o sa­lá­rio mí­nimo são 760 eu­ros bru­tos, en­quanto o sa­lá­rio mé­dio, em 2021, fi­xava-se nos 1.082,80€ – têm sido par­ti­cu­lar­mente afe­ta­dos pelo au­mento da in­fla­ção (8,2%, em Fevereiro), que tem ser­vido de pre­texto para o au­mento dos pre­ços de bens es­sen­ci­ais (+27% en­tre Janeiro de 2022 e Fevereiro de 2023). O acesso à ha­bi­ta­ção tem sido ve­dado às pes­soas mais po­bres, as­sim como à classe mé­dia: em Fevereiro, no dis­trito de Lisboa, o custo do m2 che­gou aos 3.836€ no mer­cado de com­pra e venda e aos 17€ no mer­cado de arrendamento. 

Foi neste con­texto in­com­por­tá­vel que, numa ofi­cina so­bre co­mu­ni­ca­ção e ac­ti­vismo, em Outubro do ano pas­sado, na Cova da Moura (Amadora), or­ga­ni­zada pela Iniciativa dos Comuns, se lan­çou a ideia: “E se or­ga­ni­zás­se­mos uma ma­ni­fes­ta­ção con­tra o au­mento do custo de vida dos bairros?” 

A ideia é sim­ples: não po­de­mos con­ti­nuar a as­sis­tir à de­te­ri­o­ra­ção das nos­sas con­di­ções de vida. E é pre­ciso en­vol­ver os bair­ros, que nor­mal­mente são afas­ta­dos dos cen­tros de de­ci­são e de rei­vin­di­ca­ção, nesta luta, para que, lado a lado com ac­ti­vis­tas po­lí­ti­cos e ou­tras ca­ma­das po­pu­la­res, se cons­trua um mo­vi­mento po­lí­tico or­ga­ni­zado, que faça frente à pre­ca­ri­e­dade im­posta so­bre o tra­ba­lho e a vida. 

Um manifesto e mobilização popular contra a crise 

Queremos uma vida justa, basta de au­mento dos pre­ços. Todos os dias os pre­ços so­bem, os des­pe­jos de ca­sas au­men­tam e os sa­lá­rios dão para me­nos dias do mês. As pes­soas es­tão a es­co­lher se vão aque­cer as suas ca­sas ou co­mer”. Assim co­meça o ma­ni­festo da Vida Justa, tam­bém con­vo­ca­tó­ria para a ma­ni­fes­ta­ção, as­si­nada por mais de 350 pes­soas, en­tre gente dos bair­ros, ac­ti­vis­tas e mi­li­tan­tes, ar­tis­tas, aca­dé­mi­cos e tra­ba­lha­do­res, em de­fesa dos nos­sos bair­ros e “da dig­ni­dade de vida dos que tra­ba­lham e criam ri­queza no país”. 

O ma­ni­festo para a ma­ni­fes­ta­ção exi­gia um pro­grama de crise que ta­be­lasse os pre­ços da ener­gia e dos pro­du­tos ali­men­ta­res es­sen­ci­ais, que con­ge­lasse os ju­ros dos em­prés­ti­mos das ca­sas e im­pe­disse as ren­das es­pe­cu­la­ti­vas das ca­sas, proi­bisse os des­pe­jos e que au­men­tasse os sa­lá­rios acima da in­fla­ção. Além disso, o ma­ni­festo de­fen­dia me­di­das para apoiar o co­mér­cio e as pe­que­nas em­pre­sas, de forma a ga­ran­tir pos­tos de tra­ba­lhos lo­cais e va­lo­ri­zar o tra­ba­lho mais in­vi­sí­vel, como o de quem tra­ba­lha na limpeza. 

Em Portugal, a po­pu­la­çom de bai­xos sa­lá­rios têm sido par­ti­cu­lar­mente afe­tada pelo au­mento da in­fla­ção, que tem ser­vido de pre­texto para o au­mento dos pre­ços de bens essenciais

A pu­bli­ca­ção do ma­ni­festo teve efei­tos ime­di­a­tos na co­mu­ni­ca­ção so­cial, que se in­te­res­sou pelo tema e pela ma­ni­fes­ta­ção. Houve vá­rias en­tre­vis­tas e re­por­ta­gens com os porta-vo­zes do mo­vi­mento. O tra­ba­lho de­sen­vol­vido nas re­des so­ci­ais teve efeito, em par­ti­cu­lar por­que al­gu­mas pes­soas mais me­diá­ti­cas so­li­da­ri­za­ram-se com a con­vo­ca­tó­ria da ma­ni­fes­ta­ção, mas tam­bém por­que foi cen­tral a de­nún­cia diá­ria das de­si­gual­da­des neste país – basta pen­sar nos lu­cros dos hi­per­mer­ca­dos du­rante a crise e nas di­fi­cul­da­des das pes­soas para po­de­rem co­mer – e por­que se fez um tra­ba­lho de dar voz a quem qui­sesse de­nun­ciar a sua si­tu­a­ção de de­si­gual­dade, atra­vés de vá­rios pe­que­nos ví­deos, que ti­ve­ram cen­te­nas de mi­lha­res de visualizações. 

Houve ou­tro as­pecto im­por­tante e mo­bi­li­za­dor na di­vul­ga­ção da ma­ni­fes­ta­ção: as co­la­gens de car­ta­zes não se li­mi­ta­ram às prin­ci­pais vias da ca­pi­tal e às im­por­tan­tes in­ter­fa­ces dos trans­por­tes, mas aos bair­ros po­pu­la­res da Área Metropolitana de Lisboa, em par­ti­cu­lar nos con­ce­lhos da Amadora, Almada, Barreiro, Oeiras, Loures, Seixal, Setúbal e Sintra. Os car­ta­zes nes­tes bair­ros con­vi­da­vam à par­ti­ci­pa­ção, como um lem­brete de que esta ma­ni­fes­ta­ção em con­creto é por to­dos nós, e as co­la­gens, quando fei­tas du­rante o dia, ser­viam de pre­texto para a con­versa com os moradores. 

A or­ga­ni­za­ção da ma­ni­fes­ta­ção, nos dois me­ses que a an­te­ce­de­ram, co­me­çou por pe­que­nas reu­niões em que fo­ram de­fi­ni­dos as­pec­tos bá­si­cos: as rei­vin­di­ca­ções e o ma­ni­festo, o per­curso e a data. A par­tir daí, a or­ga­ni­za­ção di­vi­diu-se en­tre ple­ná­rios, para de­ci­dir ques­tões de or­ga­ni­za­ção e de po­lí­tica de fundo, com de­ze­nas de pes­soas, e em gru­pos de trabalho. 

Mas houve tam­bém al­guma in­for­ma­li­dade or­ga­ni­za­tiva: as pes­soas que par­ti­ci­pa­vam po­diam ter o pro­cesso nas suas mãos, de­ci­dindo como e o que fa­zer nos seus lo­cais, desde que res­pei­tas­sem os prin­cí­pios de­fi­ni­dos no ma­ni­festo. Isto per­mi­tiu ra­pi­dez e en­vol­vi­mento que, num tão curto prazo de tempo, pos­si­bi­li­tou che­gar­mos ao dia 25 de Fevereiro. 

Manifestaçom ‘Casas para viver’, em Lisboa. Umha moça porta um cartaz com umha imagem de Zeca Afonso com versos do 'Grândola, vila morena'.
Manifestaçom ‘Casas para vi­ver’, em Lisboa. | esquerda.net

A manifestação foi ponto de encontro e de partida 

Nessa tarde, com a ame­aça de chuva a pai­rar, jun­támo-nos numa das prin­ci­pais pra­ças de Lisboa, o Marquês de Pombal, e ru­má­mos para a Assembleia da República, o par­la­mento por­tu­guês, em São Bento, en­ca­be­ça­dos por uma faixa com a frase ‘Todas e to­dos por uma vida justa’. Nessa ca­beça da ma­ni­fes­ta­ção, eram mui­tas as pes­soas de bair­ros de Lisboa e da sua Área Metropolitana, tam­bém com fai­xas que iden­ti­fi­ca­vam es­ses lo­cais e com rei­vin­di­ca­ções pró­prias. ‘Estamos jun­tos, es­ta­mos for­tes’ (e a ver­são em lín­gua cabo-ver­di­ana, ‘Nu sta djuntu, nu sta forti’), e ‘Costa, es­cuta, que­re­mos vida justa’ [António Costa é o nome do Primeiro-mi­nis­tro de Portugal] fo­ram al­gu­mas das pa­la­vras de or­dem que se ou­viam. ‘Tudo para to­dos’ era a frase num car­taz feito à mão, que de­mons­tra bem o sen­tido da manifestação. 

Mais atrás, na ma­ni­fes­ta­ção, se­guiam vá­rias or­ga­ni­za­ções e co­lec­ti­vos, de cau­sas pró­prias, como gru­pos anti-ra­cis­tas e fe­mi­nis­tas, ou­tros gru­pos de âm­bito sindical/laboral ou pelo di­reito à ha­bi­ta­ção, e tam­bém di­ri­gen­tes de al­guns par­ti­dos po­lí­ti­cos, como do Partido Comunista Português (PCP), do Bloco de Esquerda (BE), do Pessoas – Animais – Natureza (PAN) ou do Livre, além de gru­pos anar­quis­tas. Aliás, en­tre os subs­cri­to­res do ma­ni­festo da Vida Justa, en­con­tra­vam-se al­guns di­ri­gen­tes, de­pu­ta­dos mu­ni­ci­pais ou ve­re­a­do­res do PCP e do BE, em­bora a lista seja po­li­ti­ca­mente e so­ci­al­mente muito diversa. 

Estava lá toda a gente”, di­zia-se. De facto, a ma­ni­fes­ta­ção foi tam­bém ponto de en­con­tro en­tre ac­ti­vis­tas – e não só –, na­quela que foi uma das pri­mei­ras gran­des ma­ni­fes­ta­ções não sin­di­cais, em Portugal, no pós-pan­de­mia e após as elei­ções que de­ram uma mai­o­ria ab­so­luta ao Partido Socialista (PS) – de­pois de dois man­da­tos em que o PS go­ver­nou, em mi­no­ria, com o apoio par­la­men­tar do BE, do PCP e d’Os Verdes – e um re­sul­tado ex­pres­sivo à ex­trema-di­reita (Chega) e aos ul­tra-neo-li­be­rais (Iniciativa Liberal), re­du­zindo a pre­sença par­la­men­tar da es­querda a mí­ni­mos históricos. 

O ma­ni­festo exi­gia, en­tre ou­tras rei­vin­di­ca­çons, um pro­grama de crise que ta­be­lasse os pre­ços da ener­gia e dos pro­du­tos ali­men­ta­res es­sen­ci­ais, que con­ge­lasse os ju­ros dos em­prés­ti­mos das ca­sas e im­pe­disse as ren­das especulativas 

Foi tam­bém por isso im­por­tante mar­car pre­sença com esta ma­ni­fes­ta­ção, para dar força às for­ças pro­gres­sis­tas que lu­tam pela jus­tiça so­cial, mas tam­bém para ocu­par o es­paço que tem vindo a ser ocu­pado pela ex­trema-di­reita no des­con­ten­ta­mento po­pu­lar com o au­mento do custo de vida e para fa­zer frente ao dis­curso do­mi­nante da Iniciativa Liberal, que res­pon­sa­bi­liza os po­bres por se­rem pobres. 

Quando a ma­ni­fes­ta­ção che­gou à en­trada da Assembleia da República, su­bi­ram para um palco – uma car­ri­nha com co­lu­nas de som – um grande con­junto de ac­ti­vis­tas de vá­rios bair­ros, porta-vo­zes do mo­vi­mento e ou­tros. Pessoas que sa­biam muito bem por que mo­tivo es­ta­vam ali: “Nós não so­mos in­vi­sí­veis, so­mos in­vi­si­bi­li­za­dos”. Foi lido o ma­ni­festo e foi apre­sen­tada uma pe­ti­ção, uma “base de um pro­grama po­pu­lar”, que, en­tre os seus 17 pon­tos pro­põe a li­mi­ta­ção dos pre­ços dos bens es­sen­ci­ais, o au­mento dos sa­lá­rios su­pe­rior à taxa de in­fla­ção, o com­bate à pre­ca­ri­e­dade, ao plu­ri­em­prego e à des­re­gu­la­ção dos ho­rá­rios de tra­ba­lho, pelo res­peito à con­ci­li­a­ção da vida pro­fis­si­o­nal com a vida pes­soal e fa­mi­liar. Outros pon­tos im­por­tan­tes são a rei­vin­di­ca­ção do di­reito à do­cu­men­ta­ção le­gal e à ci­da­da­nia a to­dos os tra­ba­lha­do­res imi­gran­tes e uma sé­rie de pro­pos­tas para en­fren­tar a crise da ha­bi­ta­ção, al­gu­mas si­tu­a­ções es­pe­cí­fi­cas dos bair­ros e a crise climática. 

Manifestaçom ‘Casas para viver’, em Lisboa.
Manifestaçom ‘Casas para vi­ver’, em Lisboa. | esquerda.net

Participação na manifestação pela habitação e o futuro, bairro a bairro 

Além da re­co­lha da pe­ti­ção, que se­gue o seu ca­mi­nho, o mo­vi­mento apoiou a ma­ni­fes­ta­ção eu­ro­peia pelo di­reito à ha­bi­ta­ção ‘Casa para vi­ver’, que se re­a­li­zou no dia 1 de Abril, en­tre a Alameda Dom Afonso Henriques e a Praça do Martim Moniz, em Lisboa, mas tam­bém nou­tras ci­da­des do país, no­me­a­da­mente no Porto, em Aveiro, Braga, Coimbra e Viseu. A crise da ha­bi­ta­ção, que co­me­çou por afe­tar em par­ti­cu­lar as pes­soas das gran­des ci­da­des, Lisboa e Porto, atra­vessa agora o país inteiro. 

Nessa ma­ni­fes­ta­ção, onde tam­bém par­ti­ci­pa­ram mi­lha­res de pes­soas, o bloco da Vida Justa jun­tou cen­te­nas de pes­soas dos bair­ros, que gri­ta­vam ‘A ci­dade é para mo­rar, não é só para tra­ba­lhar’. Sentiu-se que a força que sur­giu na pri­meira ma­ni­fes­ta­ção, con­ti­nuou na ma­ni­fes­ta­ção pela habitação. 

No en­tanto, ape­sar da mo­bi­li­za­ção para as ma­ni­fes­ta­ções de 25 de Fevereiro e de 1 de Abril ter sido fran­ca­mente po­si­tiva, alar­gada e di­ver­si­fi­cada, o mo­vi­mento não pre­tende ser um or­ga­ni­za­dor de ma­ni­fes­ta­ções. Há a ne­ces­si­dade de apoiar lu­tas lo­cais e dar força e so­li­da­ri­e­dade às pes­soas e aos bair­ros que são sis­te­ma­ti­ca­mente ex­cluí­dos dos mais ele­men­ta­res di­rei­tos e de po­de­rem ma­ni­fes­ta­rem-se com a sua pró­pria voz. 

Há a ne­ces­si­dade de apoiar lu­tas lo­cais e dar força e so­li­da­ri­e­dade às pes­soas e aos bair­ros que são sis­te­ma­ti­ca­mente ex­cluí­dos dos mais ele­men­ta­res direitos

É por isso, que a pró­xima ac­ção será uma con­cen­tra­ção em frente à es­ta­ção de com­boios de Santa Cruz Damaia, no dia 22 de Abril, para exi­gir a re­a­ber­tura da parte su­pe­rior da es­ta­ção, que tem uma via de acesso di­recta para o bairro da Cova da Moura. O en­cer­ra­mento desta via foi sendo re­du­zido ao longo dos anos: em 2004, os ele­va­do­res fo­ram de­sac­ti­va­dos e fo­ram re­ti­ra­das as má­qui­nas de ven­das de bi­lhe­tes; em 2009, este acesso pas­sou a en­cer­rar às 21h00 e, em 2011, aos fins-de-se­mana. Há cinco anos, en­cer­rou de­fi­ni­ti­va­mente, obri­gando os mo­ra­do­res da Cova da Moura – e de ou­tros bair­ros – a te­rem de se des­lo­car muito mais longe, na­quela que é uma afronta e uma se­gre­ga­ção diá­ria para es­tas pessoas. 

E é este o ca­mi­nho, para já, com uma pe­ti­ção a ser re­co­lhida, bairro a bairro, de forma so­li­dá­ria, lado a lado. Estamos jun­tos, es­ta­mos fortes. 

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