O domingo 20 de janeiro de 2019 vai ser uma data difícil de esquecer no conhecido como Bairro da Jamaica, no distrito de Setúbal. Este dia supus o ponto de inflexão para denunciar o racismo institucional que padece a numerosa população negra que vive em Portugal.
As consequências do que num princípio parecia mais um incidente isolado entre moradoras do Bairro da Jamaica e polícia ainda têm alcance hoje em dia. Desde então e até agora, o Ministério Público português obrigou a Polícia de Segurança Pública (PSP) a fazer uma investigação interna para, finalmente, no mês de março, abrir processos disciplinares a dois polícias. E até o governo português, através de Augusto Santos Silva, Ministro dos Negócios Estrangeiros, apresentou desculpas e teve de esclarecer os factos ao seu homólogo angolano, Manuel Augusto. Há meses que os meios de comunicação portugueses estão a pôr a sua atenção e a analisar as condições de vida do que até agora, para eles, não era mais do que um bairro de lata foco de conflitos, onde as únicas notícias resenhadas eram as de sucessos, sem que fossem estudados os problemas de fundo.
Mas o mais destacado para as organizações que levam anos a lutar contra o racismo foi o revulsivo que esse dia significou para que muita população negra jovem de Portugal tomasse consciência e participasse pela primeira vez em manifestações antirracistas. O Bairro da Jamaica colocou acima da mesa do governo português o racismo não como um ato isolado e deu a volta ao problema. “Os problemas não os cria a população negra, senão as condições em que vive muita dela em zonas degradadas sem qualquer condição humana para os padrões europeus” indica a socióloga Luzia Moniz. Um problema que há anos tentam visibilizar ONG como o SOS Racismo ou a Femafro – Associação de Mulheres Negras, Africanas e Afrodescendentes em Portugal.
Violência policial
Nesse 20 de janeiro, depois de uma noite de festa, dois agentes da PSP deslocavam-se a este bairro de Setúbal após receberem uma chamada que alertava duma discussão entre duas mulheres de origem angolana. A chegada da polícia, que em princípio tinha de servir para pôr fim ao conflito, acabou com seis pessoas feridas e atendidas no hospital (uma delas um agente da PSP) e uma chuva de pedras contra os carros policiais. A família que ligou à polícia relatou e pôde demonstrar com vídeos em que consistiu a intervenção policial: sem mediar palavra começaram a bater nas pessoas que encontraram, estas responderam com pedras, e finalmente os dois agentes pediram reforços e um total de seis agentes deslocaram-se ao bairro para intervirem com cassetetes. Além das feridas, um moço vizinho do bairro acabou detido nesse dia.
Para entender as condições de vida das suas vizinhas, é importante deter-se na história deste bairro, nascido há várias décadas da ocupação duns prédios inacabados propriedade da empresa Urbangol, sociedade deficitária com sede num paraíso fiscal, e ocupados na sua maioria por população negra com baixa renda que não tinha condições para comprar uma casa. Não é um fenómeno isolado, já que a periferia da área metropolitana de Lisboa está inçada de numerosos bairros como este: 6 de Maio, Casal da Boba ou Cova da Moura na Amadora, Bela Vista em Setúbal, Campolide em Lisboa, mas também o Pinheiro Torres no Porto, todos eles com o denominador comum de as suas vizinhas serem de origem africana.
Extrema-direita
Quinze dias antes, o 3 de janeiro, Mário Machado, líder da Nova Ordem Social, movimento de extrema-direita, e depois de cumprir dez anos de condena polo homicídio racista de Alcindo Monteiro no Bairro Alto de Lisboa, participava num debate na TVI à volta da pergunta: “Precisamos dum novo Salazar?”. A sua aparição era denunciada por várias associações antirracistas e parlamentares de diferentes partidos de esquerda como o Bloco de Esquerda ou o Partido Comunista, que se apoiavam na Constituição da República Portuguesa nascida depois da Revolução dos Cravos, a qual impede a participação na vida pública de organizações racistas e de ideologia fascista.
Estes dois acontecimentos, unidos a comentários racistas vertidos no Facebook por agentes da PSP depois do incidente no Bairro da Jamaica foram chaves à hora de convocar e vertebrar as manifestações em Lisboa nos dias posteriores, para denunciar os numerosos episódios racistas que sofre no dia a dia a cidadania afrodescendente portuguesa. Mais de trezentas pessoas de diferentes freguesias e municípios da área metropolitana – Cacém, Oeiras, Loures, Amadora, Rio de Mouro… – sentiram-se interpeladas a participar nos protestos. As manifestações também acabaram dispersadas pela polícia.
Tanto o SOS Racismo como a Femafro coincidem em que a extrema-direita se está a reestruturar e a ganhar força em Portugal, o mesmo que no resto da Europa. “Aproveitam-se de momentos menos bons da economia para encontrar bodes expiatórios devido à necessidade da população de encontrar culpados. Nisto ‘o outro’ é um ótimo culpado e estes movimentos utilizam sempre esta retórica, não é de hoje” afirma Lúcia Furtado, da Femafro. Os dois coletivos alertam de que nos últimos meses estão a olhar “uma normalização de comportamentos racistas, um aumento do discurso do ódio e estes grupos utilizam estas armas para rapidamente colocar a população do seu lado contra o outro”, segundo constata o José Falcão, do SOS Racismo.
História negra
A recuperação da história da população negra portuguesa, desmitificar o Portugal dos descobrimentos para apresenta-lo como um país colonizador que se lucrou com a venda de escravos e espoliou os recursos das suas colónias é também chave à hora de quebrar com o racismo. Várias professoras e sociólogos portugueses estão a trabalhar nesta linha, que consideram fundamental se se quer romper com o racismo social e institucional. Também está a ser debatida a elaboração de um censo da população negra, que até agora a legislação portuguesa não permitia. “Nos últimos três anos devido a muita pressão externa da sociedade civil e organizações foi criada uma comissão de análise para a recolha de dados étnico-raciais nos censos de 2021” confirma a Lúcia Furtado.