
Em Vidas culpáveis. O controlo neoliberal do crime, Borxa Colmenero analisa as mudanças da política penal ao alento da revoluçom conservadora. Umha autêntica ruptura com o paradigma de justiça ilustrada que transformou a visom da exclusom social, a perseguiçom da dissidência e até a vida quotidiana do cidadao normalizado. Falamos com o autor sobre um mundo que se povoa de arquipélagos sem direito enquanto gere a delinquência com a lógica dos rendimentos e os lucros.
És umha pessoa formada nos movimentos sociais, mas também na pesquisa universitária e na advocacia. Este livro nasce dumha experiência prática, dumha reflexom teórica, ou de todo ao mesmo tempo?
O livro é produto dum interesse que basculou sempre entre o interesse profissional e o académico; Na minha prática, confirmo que as políticas penais estám rumadas a penalizar sectores sociais mui determinados. No plano teórico, a reflexom vem da tentativa de entender quais som as relaçons que se dam entre a cidadania, o Estado e a economia. A ideia central vai desenvolvendo-se à medida que se conforma o livro. Utilizo a pesquisa para demonstrar como certos preconceitos que se dam na luita em defesa dos direitos humanos som em verdade um obstáculo para entender a realidade.
A que te referes?
A que dentro dum mesmo Estado, convivem dinámicas de tipo democrático com outras de tipo autoritário. E se bem agem dinámicas de tipo negativo (a puniçom), agem também dinámicas de tipo positivo, encaminhadas à produçom de subjetividade.
Umha das teses do livro é que o processo de contra-revoluçom neoliberal em que vivemos tem um correlato na esfera jurídica. Trata-se dumha mudança autónoma, ou segue as diretrizes marcadas pola economia e a política?
Para entendermos as transformaçons, cumpre entender os modos de governar; o neoliberalismo é um modo de governar, antes que umha simples política económica. Falamos de áreas interrelacionadas dum todo que é a forma de governo. Ao seu abeiro convivem formas neoliberais com formas fordistas, e também com formas de tipo soberano, aquelas relacionadas com a excepcionalidade.
"o neoliberalismo é um modo de governar, antes que umha simples política económica"
Qual é o processo polo qual umha certa forma de governo se plasma numhas determinadas leis?
As lógicas penais bebem de lógicas políticas, de racionalidades que se configuram lá onde se constrói o poder. Um segundo degrau seria o dos governos a reinterpretarem as lógicas penais. A aprovaçom dumha nova lei parte sempre da pressom de grupos de pressom que permeiam as grandes forças políticas. O terceiro degrau, é o das ‘máquinas com vida própria’: a engrenagem formada por tribunais, forças policiais e administraçom penitenciária. Tal engrenagem tem um peso substancial na hora de aplicar as práticas concretas.

Afirmas que no modelo neoliberal a gestom do crime começa a conceber-se como umha indústria. Também dis que neste processo os corpos policiais ganham um peso inédito.
Isto arranca da década de 60, quando se diz que cumpre analisar o crime como mais um mercado, protagonizado por sujeitos livres e autónomos de tipo calculista. Diz-se que o Estado deve conviver com certas taxas de criminalidade, aspirando a poder geri-las. Isto rompe com a penalidade iluminista, baseada em corrigir o infrator e ressocializá-lo. Neste modelo, o papel do Estado muda: e o papel central nom é dos tribunais, com a sua pena que procura reinserir, mas dos corpos policiais.
Sabemos que no Estado espanhol estám a implantar-se os primeiros programas nesta linha. Existem já programas de contabilizaçom, baseados na análise económica do Direito. Som programas informáticos que estabelecem um limiar de toleráncia do
"Existem programas informáticos que estabelecem um limiar de tolerância do crime. Os crimes económicos som tremendamente caros"
crime, que tipo de perfil cumpre perseguir, e que quantidade de operaçons vam ser precisas. O caso mais claro é o dos imigrantes; existem políticas de expulsom, sim, mas na realidade nom se levam a cabo por serem nom rendíveis. Unicamente quando se sobarda um determinado nível, ou quando existem grupos de imigrantes que se associaram, que tenhem certa capacidade reivindicativa…entom sim, entom falamos de ‘grupo conflituoso’ e aplicamos as expulsons.
E isto acompanha-se da política de resultados e de potenciamento da imagem pública da polícia. Um fenómeno relativamente recente, nom?
Sim, recente. Há community managers procedentes do mundo empresarial contratados para levarem as contas policiais de twitter; vemo-lo também nos serviços de porta-voz de imprensa, geridas por polícias com noçons de comunicaçom, sempre seguindo um determinado padrom com que se poda identificar a mocidade. Quanto à política de resultados, como cumpre umha quantidade determinada de detençons, vai-se polo perfil mais doado, o mais vulnerável.
A outra face da moeda é que a delinquência pouco rendível combate-se menos.
Claro. A corrupçom é o grande exemplo. Todos os crimes económicos som tremendamente caros. Precisam-se economistas, contáveis, informáticos, peritos de todo tipo. O que som rendíveis entom som os delitos mais visíveis, a prostituiçom, o pequeno tráfico…
Aplica-se também esse modelo ao combate da violência machista?
Aplica-se. Estamos nesse período de tensom na qual o Estado calibra quantas mortes pode tolerar. Pode tolerar 50 por ano? Pois, entom, as políticas nom vam ir mais além, o que aconteceu nom irá causar-lhe desgaste, e continuaremos na mesma. Obviamente, neste caso há umha questom mais forte de fundo, que é o patriarcado como sistema.
"O Estado pode tolerar cinquenta feminicídios por ano? Pois logo, as políticas nom vam ir além, o que aconteceu nom irá causar-lhe desgaste e continuaremos na mesma"
Também mencionas umha lógica da rendibilidade penitenciária. Podes explicá-la?
Nos Estados Unidos, a política de ‘toleráncia zero’ levou a umha hipertrofia do sistema penal. Na sequência da crise de 2008, esse sistema esboroou. A queda do Estado social, que deu lugar ao Estado penal, levou a um beco sem saída, pois o Estado penal, em algum dos seus elos, colapsou. Isto também chegou ao nosso contexto, onde se criam fórmulas inovadoras que atingem a administraçom penitenciária, aos procuradores, aos juízes…é um processo subterráneo que procura substituir prisom por penas económicas. No mesmo sentido, vai a criaçom dos módulos de respeito, ou o fomento do trabalho nas cadeias, que se traduz em poupança para a administraçom.
Que há de novo na teoria da populaçom radicalmente do direito por razons sociais ou ideológicas? Porque excluídos e excluídas houvo sempre, e também violência contra elas.
Agamben desenvolveu esta tese, e o que achega como elemento inovador é o entendimento de que dentro dos sistemas democráticos camuflam-se sistemas encaminhados à morte. Nas principais democracias existem arquipélagos de exceçom, e isto é a primeira vez que acontece. Existírom regimes ditatoriais, mas em nenhuma democracia coexistiam os direitos com a sua negaçom radical. Essa é a novidade. Isso interpreta-se com duas achegas. A primeira delas, a de Carl Schmitt, que teorizara que o Estado, na sua plena soberania, pode suspender a democracia para manter a democracia; a segunda, a de Walter Benjamin, que declarara que ‘a história dos oprimidos é a história da excecionalidade’. Ao conjugarem-se ambas as teses, aparece a singularidade do nosso tempo. Aí temos os exemplos práticos: os Centros de Internamento de Estrangeiros, a legislaçom anti-terrorista, os isolamentos, os serviços secretos…e mesmo a suspensom de direitos nos aeroportos.

Como vencelhas o excecionalismo com a ideia do ‘inimigo interior’?
O excecionalismo nom serviu só para combater inimigos: também os construiu. Quando a legitimaçom dum poder se fai em negativo precisa de construir o antagonista. Foi justamente o que aconteceu no Estado espanhol com a retirada de ETA. O Estado começa a construçom dum novo inimigo: hoje o independentismo galego, logo o anarquismo, depois a esquerda radical…
Parece que no Estado espanhol, o inimigo interior tem mais força do que o exterior.
Sim, trata-se dos inimigos clássicos, ‘rojos y separatistas’. Tem a ver com a história de Espanha como naçom falhada. Também sabemos que a democracia nasce com um défice grande; a falta de legitimidade obriga a agrupamentos baseados no antagonismo, e isso vê-se às claras na gestom das crises basca ou catalá: o espanholismo incha-se eleitoralmente em certas zonas quando é mais desafiado.
Logo, há outros elementos que eu nom desprezaria: a importáncia da crise económica na hora de lançar políticas de coesom autoritária; ou, como dizíamos, a inércia dessas ‘máquinas com vida própria’ que geram os seus próprios ritmos e protocolos, à margem do contexto político.