Já estou farta. Hoje tivem que ir à médica (nada grave) e saim tam enfadada que nom sei se me entrará o cabreio neste espaço. Ia por umha parvada, um vulto benigno que se me inflamou devido a um catarro (isto dixo-mo o google, nom a doutora). Nom queria ir à médica porque é a terceira vez que vou em dous meses, mas olhando em internet recomendavam que o melhor era que tirasse a vergonha e acudisse para que me receitassem antibióticos. Total, que vou, entro, conto-lho, mira-mo… e ri. Sim, ri. E di-me que nom, que nom está inflamado mas que vê que estou raiada assim que me vai dar cita para umha ecografia. Nom me explica absolutamente nada, mas sim me deixa claro que estou um pouco hipocondríaca com o tema. Eu digo-lhe que de verdade, que ao tocá-lo me doi, ela sorri e escreve no seu computador. Eu estou perplexa, avergonhada e em fase de enfadar-me um monte.
Tenho determinados privilégios que me permitem sair da consulta sem fazer mais preguntas, mas há muitas pessoas para as quais o sistema médico é um inferno
A médica considera que as minhas queixas, que nom aparecem no seu livro sagrado, som infundadas. Que nom há motivos para preocupar-se e que vamos colapsar com a minha hipocondria um pouco mais o sistema sanitário. Num primeiro momento, com todo o que nom me di, síntome mal, volta-me dar vergonha estar por terceira vez em dous meses na consulta e avergonho-me de raiar-me tanto por um simples vulto benigno na minha axila; até que, saindo da consulta, toco-mo de novo e segue doendo. Nom som imaginaçons minhas e que mo neguem as vezes que queiram; sei que o vulto nom é mau, porque leva comigo meses e nom busco que mo extirpem (e se fosse o que quero é tam legítimo como nom querer). Sei que a minha preocupaçom nom está infundada e que a minha intençom nom é colapsar o sistema sanitário. O sorriso de suficiência da minha médica passa-se pola minha cabeça e enfado-me.
Saio da consulta botando fume mas, como sempre, sem dizer à médica o que realmente penso: que é, em grande parte som, uns profissionais mui pouco profissionais. Nom sabem escuitar, transmitir, nem tranquilizar. Tampouco explicam, olham por cima da ombreira a todes es pacientes e o seu libro sagrado está mui bem, mas que se digo que me doi, nom mo estou inventando, foda!
Baixo as escadas do centro médico pensando e contando‑o em notas de voz mui longas e mui enfadada: que nom me escuitam, nunca me escuitam os médicos, nunca nos escuitam, quero dizer! Nom som eu umha entre um milhom à que lhe passa, se calhar umha entre um milhom é a pessoa que tratam com a atençom que merecemos.
Cuidar umhe paciente no nível físico e nom no emocional é um erro que está na base
Chego ao andar zero e pido o meu volante para a ecografia, dam-mo para dentro dum mês e um dia. Já me rio, total, nom tenho nada, som cousas minhas, que mo deam para dentro de três se querem. Saio do centro médico, à vez que lhe digo aos captadores de sócios da Cruz Roja que nom me interessa, obrigada (isto dos captadores daria para outro artigo bem amplo) e leio o meu volante. Na segunda página estám as observaçons que a médica escreveu enquanto (me) sorria. As observaçons obviamente nom som para mim, som para as pessoas que me farám a eco. Três linhas em que eu nom entendo nada do escrito, porque, repito, essas observaçons nom estám feitas para mim. Assim que volvo rir. Se estudasse medicina entenderia o que pom aí e saberia exatamente o que opina a minha médica do que padeço, mas como som umha paciente mais, eu o único que sei é que para que nom me raie mais, vam-me fazer umha eco.
Ao chegar a casa repenso todo o que sucedeu e disponho-me a escrever o meu artigo de opiniom para o Novas, ainda com o barulho na minha cabeça. O certo é, que para a pouca cousa que é um vulto numha axila, sigo preocupada. Preocupada porque ao negar o que eu estava a dizer nom houvo nengumha soluçom, assim que tento centrar os meus pensamentos cara à possibilidade de que o vulto se desinfete só e intento centrar-me na ideia de que nom é para tanto, e ao final a conclusiom mais “saudável” nom pode ser outra que o único que passa é que me estou raiando.
As economistas feministas estám a tentarem demostrar que no centro de todo deveriam estar as vidas para viver
Estou a contar a minha experiencia pessoal e portanto som consciente de que tenho determinados privilégios que me fam sair da consulta médica mais enfadada do que preocupada. Tenho determinados privilégios que me permitem sair da consulta sem fazer mais preguntas porque nom me vai a vida nisso. Mas há muitas, muitíssimas pessoas, para as quais o sistema médico é realmente o inferno na terra. Há muitíssimas pessoas que nom podem acudir soas ao médico e nom é porque sejam incapazes ou menos que ninguém, é porque os médicos nom se preocupam polas condiçons de cada paciente, de falar a cada paciente, explicar a cada paciente, escuitar cada paciente… como a umha pessoa com o seu contexto e as suas características próprias e pessoais.
A minha crítica nom é individual à minha médica. A minha crítica, o meu enfado, antes bem, é com todo um aparato médico que começa nas faculdades de medicina, onde, parece, ensinam que a palavra dumhe paciente nom vale nada; onde, parece, nom ensinam valores de empatia, humanidade, tato; onde, basicamente, nom explicam (porque nom entendem) o que deveria ser um profissional médico.
Nom saberia dizer o que significa ser um médico para um próprio médico, porque seguro que som um monte de cousas e haverá muitas que obviamente sejam importantes, necessárias e imprescindíveis. Saber tratar umhe paciente também o é.
Contando a amigas sobre o que ia escrever, saírom muitos relatos similares a este: juízos de valor, hierarquias claras, tanto doutor-paciente como doutor-enfermeira, broncas, enfados… maltrato. Nunca esquecerei o que umha vez nos dixo Mari Fidalgo numhas jornadas para aprender a cuidar-nos: todo o que nom é bom trato, é mau trato. E se partimos dessa premissa, nos centros de saúde, maltratam-nos.
O bom trato, os cuidados (que é do que falamos quando pedimos que se nos escuite, que se nos entenda, que se nos fale e que se nos veja como pessoas), som tam necessários na medicina como em qualquer outra interaçom social. Cuidar unhe paciente parece tam óbvio que que só se faga a nível físico e nom a nível emocional e/ou psicológico é um erro incompreensível que está na base.
Mas nom é incompreensível, apenas o parece. E quando algumha cousa parece incompreensível deve-se possivelmente a que existe um trabalho invisibilizado, unhes trabalhadores invisibilizades, encarregando-se de fazerem o que nom vemos, nom queremos ver ou nom querem que vejamos. O trabalho invisibilizado de cuidados está feito por mulheres. Nom fai falta, acho, aprofundar nisto. Se nom somos conscientes pensemos em quem nos cuidou toda a vida grátis ou por soldos míseros. O trabalho de cuidados, entendido como nom produtivo e portanto nom pago ou muito mal pago, saca um peso enorme de trabalho ao trabalho produtivo, ao trabalho de bem. Sobre isto escrevérom muito as economistas feministas, que se encarregárom e encarregam de lembrar que nas casas também se fai economia e de que as mulheres fomos relegadas a um trabalho nom reconhecido durante toda a história. Se alguém quer aprofundar no tema tem Silvia Federici e Amaia Pérez Orozco (entre outras) profundando muito e muito bem.
As economistas feministas estám a tentar fazer algo maravilhoso, que nom é mais do que demostrarem que no centro de todo deveriam estar vidas para viver; e para conseguir isto nom pode ficar nengumha parte do sistema sem analisar e mudar, porque todo está impregnado de valores, práticas, tradiçon discriminantes, que impedem que umha boa parte da populaçom tenha vidas dignas.
As economistas feministas trouxérom à economia os cuidados (entre outras cousas, que o feminismo nom só vai de cuidar), visibilizando que sem cuidados nom há vidas para viver, visibilizando que som umha parte da economia sem a qual o resto nom poderia existir. Num momento de crise económica tam forte como o que vivemos, nom podemos esquecer que muitos dos serviços que o Estado antes oferecia e fôrom recortados, agora estám a ser assumidos polo “trabalho nom produtivo”.
Ao final, como boa feminista, comecei a falar de médicos e rematei nos cuidados, porque todo vai disso. Porque a vida, compas, vai de cuidar-me, cuidar-nos, de que nos cuidem e sobretudo, a história foi de cuidar-lhes. E como cuidar grátis está bem só se é recíproco pois estamos a tentar destruir uns pilares fortes que negam que cuidar seja parte do trabalho produtivo. Como sucede no caso paradigmático da medicina, que “cuidam”, mas mal e apenas umha parte do nosso corpo.
Nom gostava de acabar sem remarcar que, como digem acima, som consciente dos privilégios que tenho numha consulta (e na vida em geral). Eu tenho o direito a ser atendida, a mim nom se me nega a minha identidade, nem se me presupom nada polo meu aspeto. O sistema de saúde, com as suas faculdades de medicina, os seus teóricos, as suas instituiçons, as suas políticas… está repleto de ideologia dominante. O nosso sistema de saúde está, como todo neste sistema infame, em processo de privatizaçom, de retrocesso em qualidade na atençom, nos direitos laborais… há críticas que seguir fazendo a este sistema de saúde, críticas necessárias e legítimas para nom perdermos direitos conquistados e para conseguirmos mais. Queremos umha saúde digna que nom negue direitos, que nos acolha e recolha a todes e onde mudar a estrutura para mudá-lo todo.