Periódico galego de informaçom crítica

50 mg de cuidados ao dia

por
en­fer­mei­ras chi­le­nas (1911)

Já es­tou farta. Hoje ti­vem que ir à mé­dica (nada grave) e saim tam en­fa­dada que nom sei se me en­trará o ca­breio neste es­paço. Ia por umha par­vada, um vulto be­nigno que se me in­fla­mou de­vido a um ca­tarro (isto dixo-mo o go­o­gle, nom a dou­tora). Nom que­ria ir à mé­dica por­que é a ter­ceira vez que vou em dous me­ses, mas olhando em in­ter­net re­co­men­da­vam que o me­lhor era que ti­rasse a ver­go­nha e acu­disse para que me re­cei­tas­sem an­ti­bió­ti­cos. Total, que vou, en­tro, conto-lho, mira-mo… e ri. Sim, ri. E di-me que nom, que nom está in­fla­mado mas que vê que es­tou rai­ada as­sim que me vai dar cita para umha eco­gra­fia. Nom me ex­plica ab­so­lu­ta­mente nada, mas sim me deixa claro que es­tou um pouco hi­po­con­dríaca com o tema. Eu digo-lhe que de ver­dade, que ao tocá-lo me doi, ela sorri e es­creve no seu com­pu­ta­dor. Eu es­tou per­plexa, aver­go­nhada e em fase de en­fa­dar-me um monte.

Tenho determinados privilégios que me permitem sair da consulta sem fazer mais preguntas, mas há muitas pessoas para as quais o sistema médico é um inferno

A mé­dica con­si­dera que as mi­nhas quei­xas, que nom apa­re­cem no seu li­vro sa­grado, som in­fun­da­das. Que nom há mo­ti­vos para pre­o­cu­par-se e que va­mos co­lap­sar com a mi­nha hi­po­con­dria um pouco mais o sis­tema sa­ni­tá­rio. Num pri­meiro mo­mento, com todo o que nom me di, sín­tome mal, volta-me dar ver­go­nha es­tar por ter­ceira vez em dous me­ses na con­sulta e aver­go­nho-me de raiar-me tanto por um sim­ples vulto be­nigno na mi­nha axila; até que, saindo da con­sulta, toco-mo de novo e se­gue do­endo. Nom som ima­gi­na­çons mi­nhas e que mo ne­guem as ve­zes que quei­ram; sei que o vulto nom é mau, por­que leva co­migo me­ses e nom busco que mo ex­tir­pem (e se fosse o que quero é tam le­gí­timo como nom que­rer). Sei que a mi­nha pre­o­cu­pa­çom nom está in­fun­dada e que a mi­nha in­ten­çom nom é co­lap­sar o sis­tema sa­ni­tá­rio. O sor­riso de su­fi­ci­ên­cia da mi­nha mé­dica passa-se pola mi­nha ca­beça e enfado-me.

Saio da con­sulta bo­tando fume mas, como sem­pre, sem di­zer à mé­dica o que re­al­mente penso: que é, em grande parte som, uns pro­fis­si­o­nais mui pouco pro­fis­si­o­nais. Nom sa­bem es­cui­tar, trans­mi­tir, nem tran­qui­li­zar. Tampouco ex­pli­cam, olham por cima da om­breira a to­des es pa­ci­en­tes e o seu li­bro sa­grado está mui bem, mas que se digo que me doi, nom mo es­tou in­ven­tando, foda!

Baixo as es­ca­das do cen­tro mé­dico pen­sando e contando‑o em no­tas de voz mui lon­gas e mui en­fa­dada: que nom me es­cui­tam, nunca me es­cui­tam os mé­di­cos, nunca nos es­cui­tam, quero di­zer! Nom som eu umha en­tre um mi­lhom à que lhe passa, se ca­lhar umha en­tre um mi­lhom é a pes­soa que tra­tam com a aten­çom que merecemos.

Cuidar umhe paciente no nível físico e nom no emocional é um erro que está na base

Chego ao an­dar zero e pido o meu vo­lante para a eco­gra­fia, dam-mo para den­tro dum mês e um dia. Já me rio, to­tal, nom te­nho nada, som cou­sas mi­nhas, que mo deam para den­tro de três se que­rem. Saio do cen­tro mé­dico, à vez que lhe digo aos cap­ta­do­res de só­cios da Cruz Roja que nom me in­te­ressa, obri­gada (isto dos cap­ta­do­res da­ria para ou­tro ar­tigo bem am­plo) e leio o meu vo­lante. Na se­gunda pá­gina es­tám as ob­ser­va­çons que a mé­dica es­cre­veu en­quanto (me) sor­ria. As ob­ser­va­çons ob­vi­a­mente nom som para mim, som para as pes­soas que me fa­rám a eco. Três li­nhas em que eu nom en­tendo nada do es­crito, por­que, re­pito, es­sas ob­ser­va­çons nom es­tám fei­tas para mim. Assim que volvo rir. Se es­tu­dasse me­di­cina en­ten­de­ria o que pom aí e sa­be­ria exa­ta­mente o que opina a mi­nha mé­dica do que pa­deço, mas como som umha pa­ci­ente mais, eu o único que sei é que para que nom me raie mais, vam-me fa­zer umha eco.

Ao che­gar a casa re­penso todo o que su­ce­deu e dis­po­nho-me a es­cre­ver o meu ar­tigo de opi­niom para o Novas, ainda com o ba­ru­lho na mi­nha ca­beça. O certo é, que para a pouca cousa que é um vulto numha axila, sigo pre­o­cu­pada. Preocupada por­que ao ne­gar o que eu es­tava a di­zer nom houvo nen­gumha so­lu­çom, as­sim que tento cen­trar os meus pen­sa­men­tos cara à pos­si­bi­li­dade de que o vulto se de­sin­fete só e in­tento cen­trar-me na ideia de que nom é para tanto, e ao fi­nal a con­clu­siom mais “sau­dá­vel” nom pode ser ou­tra que o único que passa é que me es­tou raiando.

As economistas feministas estám a tentarem demostrar que no centro de todo deveriam estar as vidas para viver

Estou a con­tar a mi­nha ex­pe­ri­en­cia pes­soal e por­tanto som cons­ci­ente de que te­nho de­ter­mi­na­dos pri­vi­lé­gios que me fam sair da con­sulta mé­dica mais en­fa­dada do que pre­o­cu­pada. Tenho de­ter­mi­na­dos pri­vi­lé­gios que me per­mi­tem sair da con­sulta sem fa­zer mais pre­gun­tas por­que nom me vai a vida nisso. Mas há mui­tas, mui­tís­si­mas pes­soas, para as quais o sis­tema mé­dico é re­al­mente o in­ferno na terra. Há mui­tís­si­mas pes­soas que nom po­dem acu­dir soas ao mé­dico e nom é por­que se­jam in­ca­pa­zes ou me­nos que nin­guém, é por­que os mé­di­cos nom se pre­o­cu­pam po­las con­di­çons de cada pa­ci­ente, de fa­lar a cada pa­ci­ente, ex­pli­car a cada pa­ci­ente, es­cui­tar cada pa­ci­ente… como a umha pes­soa com o seu con­texto e as suas ca­rac­te­rís­ti­cas pró­prias e pessoais.

A mi­nha crí­tica nom é in­di­vi­dual à mi­nha mé­dica. A mi­nha crí­tica, o meu en­fado, an­tes bem, é com todo um apa­rato mé­dico que co­meça nas fa­cul­da­des de me­di­cina, onde, pa­rece, en­si­nam que a pa­la­vra dumhe pa­ci­ente nom vale nada; onde, pa­rece, nom en­si­nam va­lo­res de em­pa­tia, hu­ma­ni­dade, tato; onde, ba­si­ca­mente, nom ex­pli­cam (por­que nom en­ten­dem) o que de­ve­ria ser um pro­fis­si­o­nal médico.

Nom sa­be­ria di­zer o que sig­ni­fica ser um mé­dico para um pró­prio mé­dico, por­que se­guro que som um monte de cou­sas e ha­verá mui­tas que ob­vi­a­mente se­jam im­por­tan­tes, ne­ces­sá­rias e im­pres­cin­dí­veis. Saber tra­tar umhe pa­ci­ente tam­bém o é.

Contando a ami­gas so­bre o que ia es­cre­ver, saí­rom mui­tos re­la­tos si­mi­la­res a este: juí­zos de va­lor, hi­e­rar­quias cla­ras, tanto dou­tor-pa­ci­ente como dou­tor-en­fer­meira, bron­cas, en­fa­dos… mal­trato. Nunca es­que­ce­rei o que umha vez nos dixo Mari Fidalgo numhas jor­na­das para apren­der a cui­dar-nos: todo o que nom é bom trato, é mau trato. E se par­ti­mos dessa pre­missa, nos cen­tros de saúde, maltratam-nos.

O bom trato, os cui­da­dos (que é do que fa­la­mos quando pe­di­mos que se nos es­cuite, que se nos en­tenda, que se nos fale e que se nos veja como pes­soas), som tam ne­ces­sá­rios na me­di­cina como em qual­quer ou­tra in­te­ra­çom so­cial. Cuidar unhe pa­ci­ente pa­rece tam ób­vio que que só se faga a ní­vel fí­sico e nom a ní­vel emo­ci­o­nal e/ou psi­co­ló­gico é um erro in­com­pre­en­sí­vel que está na base.

ge­off mcfetridge

Mas nom é in­com­pre­en­sí­vel, ape­nas o pa­rece. E quando al­gumha cousa pa­rece in­com­pre­en­sí­vel deve-se pos­si­vel­mente a que existe um tra­ba­lho in­vi­si­bi­li­zado, unhes tra­ba­lha­do­res in­vi­si­bi­li­za­des, en­car­re­gando-se de fa­ze­rem o que nom ve­mos, nom que­re­mos ver ou nom que­rem que ve­ja­mos. O tra­ba­lho in­vi­si­bi­li­zado de cui­da­dos está feito por mu­lhe­res. Nom fai falta, acho, apro­fun­dar nisto. Se nom so­mos cons­ci­en­tes pen­se­mos em quem nos cui­dou toda a vida grá­tis ou por sol­dos mí­se­ros. O tra­ba­lho de cui­da­dos, en­ten­dido como nom pro­du­tivo e por­tanto nom pago ou muito mal pago, saca um peso enorme de tra­ba­lho ao tra­ba­lho pro­du­tivo, ao tra­ba­lho de bem. Sobre isto es­cre­vé­rom muito as eco­no­mis­tas fe­mi­nis­tas, que se en­car­re­gá­rom e en­car­re­gam de lem­brar que nas ca­sas tam­bém se fai eco­no­mia e de que as mu­lhe­res fo­mos re­le­ga­das a um tra­ba­lho nom re­co­nhe­cido du­rante toda a his­tó­ria. Se al­guém quer apro­fun­dar no tema tem Silvia Federici e Amaia Pérez Orozco (en­tre ou­tras) pro­fun­dando muito e muito bem.

As eco­no­mis­tas fe­mi­nis­tas es­tám a ten­tar fa­zer algo ma­ra­vi­lhoso, que nom é mais do que de­mos­tra­rem que no cen­tro de todo de­ve­riam es­tar vi­das para vi­ver; e para con­se­guir isto nom pode fi­car nen­gumha parte do sis­tema sem ana­li­sar e mu­dar, por­que todo está im­preg­nado de va­lo­res, prá­ti­cas, tra­di­çon dis­cri­mi­nan­tes, que im­pe­dem que umha boa parte da po­pu­la­çom te­nha vi­das dignas.

As eco­no­mis­tas fe­mi­nis­tas trou­xé­rom à eco­no­mia os cui­da­dos (en­tre ou­tras cou­sas, que o fe­mi­nismo nom só vai de cui­dar), vi­si­bi­li­zando que sem cui­da­dos nom há vi­das para vi­ver, vi­si­bi­li­zando que som umha parte da eco­no­mia sem a qual o resto nom po­de­ria exis­tir. Num mo­mento de crise eco­nó­mica tam forte como o que vi­ve­mos, nom po­de­mos es­que­cer que mui­tos dos ser­vi­ços que o Estado an­tes ofe­re­cia e fô­rom re­cor­ta­dos, agora es­tám a ser as­su­mi­dos polo “tra­ba­lho nom produtivo”.

Ao fi­nal, como boa fe­mi­nista, co­me­cei a fa­lar de mé­di­cos e re­ma­tei nos cui­da­dos, por­que todo vai disso. Porque a vida, com­pas, vai de cui­dar-me, cui­dar-nos, de que nos cui­dem e so­bre­tudo, a his­tó­ria foi de cui­dar-lhes. E como cui­dar grá­tis está bem só se é re­cí­proco pois es­ta­mos a ten­tar des­truir uns pi­la­res for­tes que ne­gam que cui­dar seja parte do tra­ba­lho pro­du­tivo. Como su­cede no caso pa­ra­dig­má­tico da me­di­cina, que “cui­dam”, mas mal e ape­nas umha parte do nosso corpo.

Nom gos­tava de aca­bar sem re­mar­car que, como di­gem acima, som cons­ci­ente dos pri­vi­lé­gios que te­nho numha con­sulta (e na vida em ge­ral). Eu te­nho o di­reito a ser aten­dida, a mim nom se me nega a mi­nha iden­ti­dade, nem se me pre­su­pom nada polo meu as­peto. O sis­tema de saúde, com as suas fa­cul­da­des de me­di­cina, os seus teó­ri­cos, as suas ins­ti­tui­çons, as suas po­lí­ti­cas… está re­pleto de ide­o­lo­gia do­mi­nante. O nosso sis­tema de saúde está, como todo neste sis­tema in­fame, em pro­cesso de pri­va­ti­za­çom, de re­tro­cesso em qua­li­dade na aten­çom, nos di­rei­tos la­bo­rais… há crí­ti­cas que se­guir fa­zendo a este sis­tema de saúde, crí­ti­cas ne­ces­sá­rias e le­gí­ti­mas para nom per­der­mos di­rei­tos con­quis­ta­dos e para con­se­guir­mos mais. Queremos umha saúde digna que nom ne­gue di­rei­tos, que nos aco­lha e re­co­lha a to­des e onde mu­dar a es­tru­tura para mudá-lo todo.

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