Em relação à meia europeia e estatal, Galiza é das últimas da fila na atenção à saúde mental. Os dados surpreendem mais de se terem em conta o elevado consumo de ansiolíticos e anti-depressivos nas camadas populares, especialmente mulheres e pessoas idosas, e o ratio de suicídios. Líderes num ránking trágico, o colapso da saúde mental na Galiza leva a gestar-se anos num insuficiente e deteriorado serviço assistencial e numa comunidade precarizada e com um espaço de ação minguante.
Com a pandemia da Covid-19, a sociedade galega viveu en primeira pessoa as sequelas emocionais do confinamento e de um cenário social completamente atravessado polo medo e a incerteza. A questão da saúde mental começou, desta maneira, a aparecer nas conversas e políticas públicas como um tema a trabalhar. Contudo, este colapso da saúde no povo galego afunde as suas raízes em tempos muito anteriores à crise de 2020.
A prevalência dos transtornos de saúde mental na Galiza situam-nos numa paisagem desoladora. Como uma doença especialmente virulenta, a ansiedade e a depressão infetam e estendem-se na massa social até mostrar dados alarmantes. Diversos estudos como o Inquérito Europeu de Saúde de 2022 ou o último informe do Imelga (Instituto de Medicina Legal de Galiza), de 2021, permitem-nos fazer visíveis os surtos de uma pandemia silenciada.
Uma de cada quatro galegas sofrem alguma doença ligada à saúde mental, e a comunidade autónoma galega situa-se na cabeça em mortes por suicídio no Estado espanhol: 340 pessoas em 2022
A percentagem de pessoas diagnosticadas com depressão en 2022 é de 5,54%. Além destes quadros, e segundo dados do INE (2018), aproximadamente uma de cada quatro galegas são vítimas de alguma doença ligada à saúde mental. Por riba disso, a comunidade galega situa-se todos os anos, junto com as Astúrias, na cabeça em mortes por suicídio no Estado espanhol: 340 pessoas em 2022, quadruplicando os falecimentos por acidentes de tráfego. Ainda sem fechar os registos de 2023, sabe-se que durante o primeiro semestre faleceram por esse motivo 141 pessoas.
Galiza regista logo uma média de 5 suicídios à semana, ou 12 suicídios por cada 100.000 habitantes, muito por cima dos 8,8 que regista a média estatal. Essas cifras preocupam a especialistas em saúde mental, quem asseguram que 90% das pessoas que se suicidam tinham antecedentes de uma doença mental que poderia ser tratada.
Resposta política insuficiente
Foi neste contexto, no ano 2020, que a Junta punha em andamento o Plano de Saúde Mental de Galiza Poscovid-19 (2020–2024), em que foram destinados 80 milhões de euros para prever “a aparição de problemas de saúde mental na população galega e estabelecer melhoras na assistência sócio-sanitária às pessoas com transtornos mentais”. A iniciativa, agora já na sua última fase, foi celebrada em outubro polo próprio presidente Alfonso Rueda, quem insistiu no aumento efetivo de recursos, contratos e serviços.
Contudo, o Colégio Oficial de Psicologia da Galiza (COPG) dissente e aponta que só 45 das 241 vagas prometidas para pessoal especializado em saúde mental foram cobertas. Ademais desses dados, julgados como insuficientes, a entidade denuncia também desequilíbrios entre as diferentes áreas sanitárias: desde o ratio de 7 psicólogas para cada 100.000 habitantes na área de Ferrol até os 3,98 em Pontevedra. Em linhas gerais, a meia galega não supera as 5 profissionais e, no caso da área de Ponte Vedra, não alcança os 4. Esta quantidade cai muito longe dos ratios recomendados pola OMS, que estabelecem 18 psiquiatras e 18 psicólogas por cada 100.000 habitantes.
O COPG critica a vulneração do direito a uma “atenção acessível, digna e de qualidade” que sofre a população galega, tanto na psicologia clínica como na sanitária. Segundo este organismo profissional, o país também encabeça o consumo de psico-fármacos para ansiedade ou depressão: 800.000 pessoas consomem diariamente (das quais 20.000 são adolescentes menores de quinze anos), o que representa um terço da população.
A realidade da consulta
Em coincidência com esta fotografia da sociedade galega como consumidora massiva de psico-fármacos, o psiquiatra Diego González partilha a sua experiência diária num centro de saúde da Marinha. “Tal e como está estruturado o sistema, o fármaco é muitas das vezes a única ou a principal resposta que se dá ao malestar emocional”, explica.
Dentro do Sergas, existem hospitais de dia especializados em saúde mental, dispositivos de reabilitação para aqueles quadros mais graves, unidades de continuidade de cuidados (com, por exemplo, equipas a domicílio) e serviços de consulta de psicologia e psiquiatria. Nestas últimas, a miúdo a primeira linha de cuidados e atenção nesta área, os quadros mais habituais são a ansiedade e a depressão. “Estas doenças são quadros ligados à neurose, que som muito mais reativas às situações sociais e ‑por isso mesmo- também reagem muito bem à psicoterapia”, detalha González.
O ‘Colexio Oficial de Psicoloxía de Galicia’ (COPG) aponta que só 45 das 241 vagas prometidas para pessoal especializado em saúde mental foram preenchidas. A média galega não supera as 5 profissionais por 100.000 habitantes
A pesar disto, a atenção psicológica no Sergas é a dia de hoje um serviço restringido, com listas de espera de até três meses, “polo qual não podemos dizer que seja replicável para toda a sociedade”, lamenta o psiquiatra. “O aceitável seria poder ter citas mensais, cousa a dia de hoje impossível, e o ideal cada quinze dias, o que agora é completamente inviável”, expõe. A isto soma-se-lhe a falta de continuidade dos cuidados na atenção à saúde mental. “Em psiquiatria tarda-se mais em tomar decisões médicas: para dar uma alta tens de ser capaz de determinar qual era o estado de um paciente quando teve um episódio agudo, que expectativas de melhora pode ter, quando chega a um estado de equilíbrio… Eu dou mais altas agora do que quando comecei na minha vaga”, exemplifica.
Em relação a isto, González ilustra o tratamento psiquiátrico que fornece “como um apoio, uma ferramenta para diminuir o malestar, mas não uma solução a um problema”. Comenta que na sua consulta passam diariamente quadros de neurose causados por stress laboral, sobrecargas, más condições de vida, maus tratos, acoso, instabilidade na vivenda, insegurança, situações complexas no pessoal… “Nessas situações os psico-fármacos ajudam porque uma pessoa pode resolver estas situações melhor se é quem de dormir bem, se não tem crises de ansiedade… mas se são as únicas ferramentas que lhes ofertamos criamos outros problemas”, indica. A confiança excessiva na medicação, adverte, “pode provocar uma des-responsabilização do paciente perante a sua situação, cronificando quadros se se refugiam na etiqueta e na sua receita, sem planificar mudanças, reduzindo a sua capacidade de ação-reação”.
Desta maneira, o deterioro da atenção sanitária e a falta de recursos acompanha um desgaste de mecanismos sociais. “Às vezes semelha que temos um papel de apaga-lumes, porque questões que se poderiam resolver doutra forma, como um sindicato ou uma rede comunitária de apio forte, acabam na minha consulta”, resume.
Fora do foco
Uma das demandas mais comuns entre os coletivos de profissionais e pacientes é, precisamente, ampliar o foco quando falamos de saúde mental. Vencelhar a incidência de quadros ansioso-depressivos e as alarmantes cifras de suicídios às doenças mentais “desloca a ação preventiva para o sistema assistencial de saúde”, denunciam no Movimento Galego pola Saúde Mental.
Para um martelo tudo som cravos, e assim é que fica fora de quadro a revisão dos estilos de vida predominantes, com um lazer protagonizado polo consumo de álcool e outros tóxicos, marcadores de risco em saúde mental e detonantes de peso no suicídio. “Cumpre ter em conta que reconstruir hábitos requer tempo, e isso requer recursos, o que é bem difícil se trabalhas e tens que cuidar de crianças ou dependentes”, incide González, quem diz atender principalmente mulheres sobrecarregadas polos labores de cuidados.
Fora desta perceção reducionista dos problemas de saúde mental, ficam logo sem atender as casuístas de diferentes coletivos. Na sala de espera de um psiquiatra, em consequência, podem “ser todas as que estão, mas não estar todas as que são”. As pessoas migrantes (com piores dados em condições laborais e às vezes com redes sociais mais precárias) ou os homens (a miúdo educados em modelos de afrontamento mais ligados ao consumo e à violência) são, entre outros perfis, alguns rostros menos habituais nas consultas.
Nos serviços de consulta de psicologia e psiquiatria os quadros mais habituais são a ansiedade e a depressão. “Estas doenças são quadros ligados à neurose, que som muito mais reativas às situações sociais”, expom o psiquiatra Diego González
Se bem os dados de suicídio revelam maior incidência entre os varões de entre 50 e 80 anos, também este aumenta entre a mocidade e as mulheres adultas. Atribuir, pois, condutas suicidas ou estados de ânimo depressivos unicamente a transtornos psíquicos elude a responsabilidade pública e coletiva de construir uma sociedade mais igualitária e justa, com um maior contato entre pessoas e centrada no alívio do sofrimento.
“O suicídio é uma questão humana, temos que entender que determinadas pessoas vem‑o como uma saída desejável a uma situação vital problemática, quando algumas destas podem ter alternativas se houver maior estabilidade na morada, no trabalho, vidas mais saudáveis e dignas de ser vividas”, conclui González.
No passado dezembro denunciou-se o desmantelamento da Unidade de Alcoolismo da área sanitária de Lugo. As unidades de atenção infanto-juvenil propulsadas polo Plano da Junta da Galiza ficam raquíticas perante a evidência do problema. Que tipo de sociedade apresentamos à gente nova? Que poder de ação ou autonomia deixamos a uma pessoa que pede ajuda e só recebe fármacos? Quem cai na grande fenda entre a atual atenção em saúde mental e todas as pessoas que a precisam no país? Quais estratégias a futuro? Amanhã, a sala de espera seguirá cheia, as farmácias galegas continuarão a vender cifras recorde de psico-fármacos no Estado, mais um suicídio pode ser contado.