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Do corte de direitos no estado de alarme para a ameaça do estado de exceção

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exér­cito es­pa­nhol nas ruas de Vigo du­rante o es­tado de alarme em março de 2020 (al­berte)

Escrevo este ar­tigo ainda sem co­nhe­cer o con­teúdo da re­no­me­ada sen­tença do Tribunal Constitucional es­pa­nhol que de­clara a nu­li­dade do es­tado de alarme, de­cre­tado em março de 2020 pelo go­verno es­pa­nhol. Tudo quanto é co­nhe­cido so­bre a dita de­ci­são é atra­vés das fu­gas de in­for­ma­ção na im­pressa. Mais um ele­mento que de­mons­tra a in­ten­ção do Tribunal Constitucional de in­ci­dir na agenda po­lí­tica es­pa­nhola. Seja como for, o certo é que sa­be­mos qual é o nú­cleo da de­ci­são: o go­verno não de­veu ter de­cla­rado o es­tado de alarme, se­não o de ex­ce­ção, já que a li­mi­ta­ção do di­reito fun­da­men­tal de se mo­ver li­vre­mente foi completa. 

Certamente, a so­lu­ção ju­rí­dica ótima não se­me­lha ser a su­ge­rida pelo Tribunal Constitucional: a con­fi­gu­ra­ção le­gal do es­tado de alarme es­ta­be­lece que este é o ins­tru­mento idó­neo em caso de crise sa­ni­tá­ria. Pelo con­trá­rio, o es­tado de ex­ce­ção esta pen­sado para ca­sos de al­te­ra­ção pro­funda da or­dem pú­blica. Certamente, o es­tado de alarme não ha­bi­lita para a sus­pen­são com­pleta do di­reito fun­da­men­tal de se mo­ver com li­ber­dade, o que si faz o es­tado de ex­ce­ção. Contudo, é um dis­pa­rate que na sua pre­ten­são de es­bo­çar um re­lato que lhe per­mita à di­reita es­pa­nhola acu­sar a es­querda de li­ber­ti­cida, o Tribunal Constitucional re­co­mende a ado­ção dum ins­tru­mento que, ao fim e ao cabo, ha­bi­lita o go­verno para res­trin­gir com mais se­ve­ri­dade mais di­rei­tos fundamentais.

É um dis­pa­rate que o Tribunal Constitucional re­co­mende a ado­ção do es­tado de ex­ce­ção, que ha­bi­lita o go­verno para res­trin­gir com mais se­ve­ri­dade mais di­rei­tos fundamentais

Para além das ex­tra­va­gân­cias do que, com cer­teza, é o Tribunal Constitucional mais ati­vista e di­rei­tista da his­tó­ria do Estado, a ver­dade é que as me­di­das do go­verno são muito ques­ti­o­ná­veis. Deixando à parte a ideia de a pan­de­mia ter sido um pre­texto para criar um clima de pâ­nico e avan­çar na am­pli­a­ção de me­di­das de ex­ce­ção con­tra a po­pu­la­ção, o certo é que as me­di­das ado­ta­das pelo go­verno ti­ve­ram um ri­gor desnecessário.

Assim foi de­nun­ci­ado por nu­me­ro­sas as­so­ci­a­ções em de­fesa dos di­rei­tos e li­ber­da­des pú­bli­cas, como Esculca, que já o ano pas­sado pujo ao dis­por do pú­blico um mo­delo de ale­ga­ções con­tra san­ções im­pos­tas du­rante o es­tado de alarme. As res­tri­ções da mo­bi­li­dade fo­ram em es­sên­cia muito am­plas. A pró­pria lei or­gâ­nica que re­gula o es­tado de alarme acorda que o go­verno po­derá “li­mi­tar a cir­cu­la­ção ou per­ma­nên­cia de pes­soas ou veí­cu­los em ho­ras e lu­ga­res de­ter­mi­na­dos, ou con­di­ci­ona-las ao cum­pri­mento de cer­tos re­qui­si­tos”. Quer di­zer: a le­gis­la­ção não per­mite mais do que li­mi­tar a mo­bi­li­dade (atra­vés do to­que de re­co­lher, da li­mi­ta­ção de es­pa­ços e ati­vi­da­des, etc.), mas não ha­bi­lita para der­ro­gar o di­reito de se mo­ver livremente. 

Além de a pan­de­mia ter sido um pre­texto para avan­çar na am­pli­a­ção de me­di­das de ex­ce­ção con­tra a po­pu­la­ção, as me­di­das ado­ta­das pelo go­verno ti­ve­ram um ri­gor desnecessário

Com efeito, inú­me­ros fo­ram os pro­ble­mas que esta pos­tura aca­bou por sus­ci­tar no nosso país, já que o con­fi­na­mento to­tal é in­com­pa­tí­vel com a vida nos pe­que­nos nú­cleos de po­vo­a­ção e mesmo des­ne­ces­sá­rio. Por exem­plo, o real de­creto que or­de­nava o con­fi­na­mento não pre­via, como ex­ce­ção à proi­bi­ção de sair do do­mi­ci­lio, a ne­ces­si­dade de cui­dar das hor­tas, plan­ta­ções ou col­meias. Também é justo se per­gun­tar se era pre­ciso para en­fren­tar a pan­de­mia con­fi­nar os pe­que­nos nú­cleos de po­vo­a­ção, onde as pes­soas em con­tacto são muito me­nos nu­me­ro­sas do que nas ci­da­des e o es­paço para o pas­seio e o la­zer é muito maior. Sem dú­vida, uma das gran­des ei­vas do ins­tru­mento ju­rí­dico que re­gu­lava o con­fi­na­mento é o seu des­co­nhe­ci­mento da re­a­li­dade ru­ral, que teve que ser cor­ri­gido de forma serô­dia e errada.

É di­fí­cil tam­bém com­pre­en­der que o con­fi­na­mento afe­tasse toda a po­pu­la­ção du­rante todo o dia. Em ou­tros es­ta­dos eu­ro­peus, foi sem­pre pos­sí­vel pra­ti­car des­porto e pas­sear ao ar li­vre, mesmo com am­plas li­mi­ta­ções ho­rá­rias e pe­ri­me­trais. Essa des­con­fi­ança por parte dos po­de­res pú­bli­cos tra­du­ziu-se num grande so­fri­mento, es­pe­ci­al­mente para as pes­soas que mo­ram soas, ou em vi­ven­das pe­que­nas ou mal acondicionadas.

mem­bros do atual Tribunal Constitucional espanhol

Semelha ló­gico re­la­ci­o­nar este tipo de me­di­das com o au­mento do de­te­ri­oro das con­di­ções men­tais na po­pu­la­ção, em par­ti­cu­lar de trans­tor­nos de an­si­e­dade, de­pres­são e stress. A gra­vi­dade desta nova pan­de­mia não deve ser su­bes­ti­mada: se­gundo da­dos do CIS, perto do 7% da po­pu­la­ção do es­tado acu­dira aos ser­vi­ços da saúde men­tal du­rante os úl­ti­mos me­ses, à sua vez a OMS tem aler­tado que o au­mento de ca­sos pro­vo­cou uma grave per­tur­ba­ção ou pa­ra­li­sa­ção dos ser­vi­ços de saúde men­tal no 93% dos es­ta­dos do mundo. Contudo, sur­pre­ende a pas­si­vi­dade dos po­de­res pú­bli­cos pe­rante esta pro­ble­má­tica: as pes­soas com pro­ble­mas de saúde men­tal não es­tão a se­rem tra­ta­das com pri­o­ri­dade nos pla­nes de va­ci­na­ção, não há mesmo a dia de hoje uma po­lí­tica de­ci­dida para abor­dar o pro­blema e nem se­quer se tem re­for­çado a as­sis­tên­cia psi­co­ló­gica em cen­tros edu­ca­ti­vos. Bem é certo que se trata duma do­ença que afeta mais a pes­soas de classe tra­ba­lha­dora e de gé­nero fe­mi­nino, o qual, se ca­lhar, ex­plica a desídia.

As pes­soas com pro­ble­mas de saúde men­tal não es­tão a se­rem tra­ta­das com pri­o­ri­dade nos pla­nes de va­ci­na­ção e não há uma po­lí­tica de­ci­dida para abor­dar o problema

Um tra­ta­mento di­fe­rente me­re­cem as proi­bi­ções da ati­vi­dade po­lí­tica, es­pe­ci­al­mente na rua após o fim do con­fi­na­mento e o re­la­xa­mento das me­di­das. Se em fi­nais de abril de 2020 era a ma­ni­fes­ta­ção do dia das pes­soas tra­ba­lha­do­ras con­vo­cada pela CUT em Vigo a que fi­cava proi­bida pelo de­le­gado do go­verno es­pa­nhol e o Tribunal Superior de Justiça, mais à frente eram as con­cen­tra­ções da CIG as que eram ob­jeto de de­nún­cias por parte da po­lí­cia. Cumpre lem­brar que a pro­posta da CUT con­sis­tia numa ca­ra­vana de au­to­car­ros con­du­zi­dos por pes­soas in­di­vi­du­ais e sem con­tacto en­tre elas. Tão só dias de­pois a ex­trema di­reita exer­cia o di­reito de ma­ni­fes­ta­ção em Madrid sem se­pa­ra­ção en­tre pes­soas e sem proi­bi­ções nem san­ções por parte dos agentes. 

Enfim, a lis­ta­gem de agra­vos é am­pla: da ne­ga­tiva à li­ber­ta­ção de pes­soas pre­sas em ter­ceiro grau pe­ni­ten­ciá­rio até a des­ne­ces­sá­ria ri­go­ro­si­dade com as cri­an­ças, pas­sando pelo des­co­nhe­ci­mento do prin­cí­pio de ti­pi­ci­dade nos mi­lha­res de de­nún­cias for­mu­la­das pela po­lí­cia na­que­les dias. Não é des­ca­be­lado afir­mar que o go­verno atuou com des­prezo a di­rei­tos fun­da­men­tais bá­si­cos. Contudo, a so­lu­ção pro­posta pelo Tribunal Constitucional es­pa­nhol, longe de pro­te­ger es­ses di­rei­tos, abre por­tas para uma maior de­gra­da­ção dos mes­mos no futuro.

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