É possível ler em muitos espaços distintos as supostas origens populares do futebol, contrapondo-as com a atual deriva do futebol dos grandes salários. Se observarmos a história do futebol na Galiza, bateremos com a realidade.
Igual que em toda a Europa, o futebol foi importado como uma atividade de elites, ou de pessoas que queriam ser elites. Foram os filhos de classes abastadas que viajaram para estudar no estrangeiro e lá apreenderam a jogar futebol. Ao seu retorno, difundiram o jogo entre os seus iguais mas, com o passar do tempo, também os subalternos começaram a jogar. Quando as elites necessitaram melhorar a qualidade das suas equipas, incorporaram as pessoas que destacaram no manejo da bola, mesmo sendo de classes populares.
Esta foi a sequência da primeira expansão do futebol nas cidades galegas, acontecida entre fins do século XIX e começos do XX. Uma atividade de elites urbanas que queriam melhorar o seu capital social e se socializar com os seus iguais, com um desporto trazido da prestigiosa Inglaterra (1).
Nas décadas de 10 e 20, o futebol expandiu-se por toda a Galiza, sendo então que se popularizou. Elites locais ou profissionais, como doutores, farmacêuticos, advogados e mesmo padres, foram educados em cidades e lá aprenderam a jogar futebol. Ao retornarem para as suas vilas ou aldeias de origem, alguns difundiram o futebol entre os homens de classes populares. Não assim entre as mulheres, relegadas às bancadas ou a fazerem pontapés iniciais. Considerava-se que o futebol era demasiado violento para elas e só podiam dedicar-se a desportos como o ténis.
Ao retornarem para as suas vilas ou aldeias de origem, alguns difundiram o futebol entre os homens de classes populares. Não assim entre as mulheres, relegadas às bancadas ou a fazerem pontapés iniciais
Deixou‑o escrito Otero Pedrayo em Arredor de si (1930). Xacobe Solovio juntava os meninos da aldeia sob a sua direção:
“Os once xogaban baixo a sombra do pomar; polos muros axexaban facianas curiosas de nenos. Os mociños aldeáns e o señorito xuntábanse nunha comunidade deportiva. Xa non era o vencello do respecto social, da gratitude, do medo, da tradición; outra figura da sociedade facía os seus primeiros ensaios na aldea” (p. 62).
Não é esta só uma figura literária. É assim que o futebol chegou a grande parte da Galiza não urbana. Joaquín Pérez, filho de emigrantes retornados enriquecidos em Cuba, estudou Direito em Madrid. Lá aprendeu a jogar futebol, chegando a fazê-lo bem e integrando o Atlético de Madrid. Ao regresso à Galiza, jogou no Deportivo da Corunha e, já de volta em Fene, a sua vila natal, converteu-se no treinador de “un núcleo grande de jóvenes campesinos” (2). Ele mesmo foi o promotor da construção de um campo de desportos onde nos anos vinte se disputaram muitos jogos, para os quais mesmo se fretavam lanchas que traziam gente da outra margem da ria (3).
Com o tempo, as iniciativas dos sportmen promotores do desporto converteram-se em iniciativas comunitárias. Em 1927, o “núcleo de camponeses” formou oficialmente o Fene Sport Club, uma equipa que se manteve até 1936. A sede social do clube era o Café de Lamas, que anos depois foi o Cinema Fene, primeiro cinema da vila. Outros diretivos eram o sapateiro, o carpinteiro, o mestre da escola da Sociedade de Emigrantes Naturales de Fene ou membros da Sociedade Agrária solidária La Necesaria. O capitão da equipa era Francisco Fernández Dapena; ferreiro, caldeireiro e depois trabalhador no estaleiro de Bazán. Outros jogadores eram barbeiros, aprendizes…
Noutra das freguesias do concelho, formou-se o Club Deportivo Barallobre. Criado a finais de 1927 polo farmacêutico, nascido em 1869, e outras pessoas de profissões várias e mais jovens, conformando o relevo geracional.
Em 1934, um grupo de vizinhos de Baralhobre promoveu a construção do Monumento ao Caminhante Desconhecido, uma homenagem a todos os emigrantes. Foi financiado com uma subscrição popular por toda a Galiza. Na colocação da primeira pedra esteve uma representação do Fene Sport Club (4) e na inauguração, a escutarem Ramón Vilar Ponte e Ramón Otero Pedrayo (6), estavam os diretivos do Barallobre FC, continuador do futebol na freguesia. Estas duas equipas fizeram parte também da criação da Federação Cultural Desportiva Operária de Ferrol em julho do 1936.
O povo assumiu a cultura desportiva que vinha das elites e roubou‑a, chegando a se desenvolver uma tendência associativa popular que descolava em julho de 1936, quando foi descabeçada pelos golpistas
Dias depois, produziu-se o golpe de estado militar de julho de 1936. Num intento por decapitar a sociedade civil e os adversários políticos, vários jogadores e diretivos destes clubes foram julgados por rebelião e alguns assassinados no castelo de São Filipe (7). A experiência de Fene é uma mais das acontecidas por toda a Galiza. A chegada do desporto difundida pelos sportmen, a sua popularização entre as camadas populares e os vínculos com o mundo cultural e político viram-se incrementados nos anos da República. Em todas as cidades e muitas vilas e aldeias do país deparamo-nos com experiências de auto-organização desportiva. O povo assumiu a cultura desportiva que vinha das elites e roubou‑a, chegando a se desenvolver uma tendência associativa popular que descolava em julho de 1936, quando foi descabeçada pelos golpistas. Desde então, os militares conspiradores ensaiaram políticas fascistas de enquadramento da juventude e dos tempos livres no desporto, mas essa é outra história.
NOTAS
1. Andrés DOMÍNGUEZ ALMANSA, 2009: Historia social do deporte en Galicia: cultura deportiva e modernidade, 1850- 1920, Vigo, Galaxia.
2. El Correo Gallego, 11/7/1920.
3. El Correo Gallego, 2/4/1921.
4. El Correo Gallego, 12/5/1934.
5. O ato de inauguraçom do Monumento ao Caminhante Desconhecido relata-se em El Correo Gallego, 3/7/1934.
6. El Correo Gallego, 9/7/1936
7. Roque SANFIZ ARIAS, 2019: “Febre no campo. Fútbol en Fene ata 1936”, Murguía. Revista Galega de Historia, 39 (2019), pp. 71–93.