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Criado pelos pobres, roubado pelos ricos?

por
Equipa do Fene Sport Club com Joaquín Pérez no cen­tro, com boina. Ca. 1927. ar­quivo mu­ni­ci­pal de fene

É pos­sí­vel ler em mui­tos es­pa­ços dis­tin­tos as su­pos­tas ori­gens po­pu­la­res do fu­te­bol, con­tra­pondo-as com a atual de­riva do fu­te­bol dos gran­des sa­lá­rios. Se ob­ser­var­mos a his­tó­ria do fu­te­bol na Galiza, ba­te­re­mos com a realidade. 

Igual que em toda a Europa, o fu­te­bol foi im­por­tado como uma ati­vi­dade de eli­tes, ou de pes­soas que que­riam ser eli­tes. Foram os fi­lhos de clas­ses abas­ta­das que vi­a­ja­ram para es­tu­dar no es­tran­geiro e lá apre­en­de­ram a jo­gar fu­te­bol. Ao seu re­torno, di­fun­di­ram o jogo en­tre os seus iguais mas, com o pas­sar do tempo, tam­bém os su­bal­ter­nos co­me­ça­ram a jo­gar. Quando as eli­tes ne­ces­si­ta­ram me­lho­rar a qua­li­dade das suas equi­pas, in­cor­po­ra­ram as pes­soas que des­ta­ca­ram no ma­nejo da bola, mesmo sendo de clas­ses populares. 

Esta foi a sequên­cia da pri­meira ex­pan­são do fu­te­bol nas ci­da­des ga­le­gas, acon­te­cida en­tre fins do sé­culo XIX e co­me­ços do XX. Uma ati­vi­dade de eli­tes ur­ba­nas que que­riam me­lho­rar o seu ca­pi­tal so­cial e se so­ci­a­li­zar com os seus iguais, com um des­porto tra­zido da pres­ti­gi­osa Inglaterra (1).

Nas dé­ca­das de 10 e 20, o fu­te­bol ex­pan­diu-se por toda a Galiza, sendo en­tão que se po­pu­la­ri­zou. Elites lo­cais ou pro­fis­si­o­nais, como dou­to­res, far­ma­cêu­ti­cos, ad­vo­ga­dos e mesmo pa­dres, fo­ram edu­ca­dos em ci­da­des e lá apren­de­ram a jo­gar fu­te­bol. Ao re­tor­na­rem para as suas vi­las ou al­deias de ori­gem, al­guns di­fun­di­ram o fu­te­bol en­tre os ho­mens de clas­ses po­pu­la­res. Não as­sim en­tre as mu­lhe­res, re­le­ga­das às ban­ca­das ou a fa­ze­rem pon­ta­pés ini­ci­ais. Considerava-se que o fu­te­bol era de­ma­si­ado vi­o­lento para elas e só po­diam de­di­car-se a des­por­tos como o ténis.

Ao re­tor­na­rem para as suas vi­las ou al­deias de ori­gem, al­guns di­fun­di­ram o fu­te­bol en­tre os ho­mens de clas­ses po­pu­la­res. Não as­sim en­tre as mu­lhe­res, re­le­ga­das às ban­ca­das ou a fa­ze­rem pon­ta­pés iniciais

Deixou‑o es­crito Otero Pedrayo em Arredor de si (1930). Xacobe Solovio jun­tava os me­ni­nos da al­deia sob a sua direção: 

Os once xo­ga­ban baixo a som­bra do po­mar; po­los mu­ros axe­xa­ban fa­ci­a­nas cu­ri­o­sas de ne­nos. Os mo­ciños al­deáns e o seño­rito xun­tá­banse nu­nha co­mu­ni­dade de­por­tiva. Xa non era o ven­cello do res­pecto so­cial, da gra­ti­tude, do medo, da tra­di­ción; ou­tra fi­gura da so­ci­e­dade fa­cía os seus pri­mei­ros en­saios na al­dea” (p. 62).

À es­querda, Outeiro Pedraio na inau­gu­ra­çom do mo­nu­mento ao Caminhante Desconhecido. À di­reita, es­tan­darte do ‘FC Barallobre’ no mesmo ato em 1934.

Não é esta só uma fi­gura li­te­rá­ria. É as­sim que o fu­te­bol che­gou a grande parte da Galiza não ur­bana. Joaquín Pérez, fi­lho de emi­gran­tes re­tor­na­dos en­ri­que­ci­dos em Cuba, es­tu­dou Direito em Madrid. Lá apren­deu a jo­gar fu­te­bol, che­gando a fazê-lo bem e in­te­grando o Atlético de Madrid. Ao re­gresso à Galiza, jo­gou no Deportivo da Corunha e, já de volta em Fene, a sua vila na­tal, con­ver­teu-se no trei­na­dor de “un nú­cleo grande de jó­ve­nes cam­pe­si­nos” (2). Ele mesmo foi o pro­mo­tor da cons­tru­ção de um campo de des­por­tos onde nos anos vinte se dis­pu­ta­ram mui­tos jo­gos, para os quais mesmo se fre­ta­vam lan­chas que tra­ziam gente da ou­tra mar­gem da ria (3).

Com o tempo, as ini­ci­a­ti­vas dos sport­men pro­mo­to­res do des­porto con­ver­te­ram-se em ini­ci­a­ti­vas co­mu­ni­tá­rias. Em 1927, o “nú­cleo de cam­po­ne­ses” for­mou ofi­ci­al­mente o Fene Sport Club, uma equipa que se man­teve até 1936. A sede so­cial do clube era o Café de Lamas, que anos de­pois foi o Cinema Fene, pri­meiro ci­nema da vila. Outros di­re­ti­vos eram o sa­pa­teiro, o car­pin­teiro, o mes­tre da es­cola da Sociedade de Emigrantes Naturales de Fene ou mem­bros da Sociedade Agrária so­li­dá­ria La Necesaria. O ca­pi­tão da equipa era Francisco Fernández Dapena; fer­reiro, cal­dei­reiro e de­pois tra­ba­lha­dor no es­ta­leiro de Bazán. Outros jo­ga­do­res eram bar­bei­ros, aprendizes…

Noutra das fre­gue­sias do con­ce­lho, for­mou-se o Club Deportivo Barallobre. Criado a fi­nais de 1927 polo far­ma­cêu­tico, nas­cido em 1869, e ou­tras pes­soas de pro­fis­sões vá­rias e mais jo­vens, con­for­mando o re­levo geracional.

Em 1934, um grupo de vi­zi­nhos de Baralhobre pro­mo­veu a cons­tru­ção do Monumento ao Caminhante Desconhecido, uma ho­me­na­gem a to­dos os emi­gran­tes. Foi fi­nan­ci­ado com uma subs­cri­ção po­pu­lar por toda a Galiza. Na co­lo­ca­ção da pri­meira pe­dra es­teve uma re­pre­sen­ta­ção do Fene Sport Club (4) e na inau­gu­ra­ção, a es­cu­ta­rem Ramón Vilar Ponte e Ramón Otero Pedrayo (6), es­ta­vam os di­re­ti­vos do Barallobre FC, con­ti­nu­a­dor do fu­te­bol na fre­gue­sia. Estas duas equi­pas fi­ze­ram parte tam­bém da cri­a­ção da Federação Cultural Desportiva Operária de Ferrol em ju­lho do 1936.

O povo as­su­miu a cul­tura des­por­tiva que vi­nha das eli­tes e roubou‑a, che­gando a se de­sen­vol­ver uma ten­dên­cia as­so­ci­a­tiva po­pu­lar que des­co­lava em ju­lho de 1936, quando foi des­ca­be­çada pe­los golpistas

Dias de­pois, pro­du­ziu-se o golpe de es­tado mi­li­tar de ju­lho de 1936. Num in­tento por de­ca­pi­tar a so­ci­e­dade ci­vil e os ad­ver­sá­rios po­lí­ti­cos, vá­rios jo­ga­do­res e di­re­ti­vos des­tes clu­bes fo­ram jul­ga­dos por re­be­lião e al­guns as­sas­si­na­dos no cas­telo de São Filipe (7). A ex­pe­ri­ên­cia de Fene é uma mais das acon­te­ci­das por toda a Galiza. A che­gada do des­porto di­fun­dida pe­los sport­men, a sua po­pu­la­ri­za­ção en­tre as ca­ma­das po­pu­la­res e os vín­cu­los com o mundo cul­tu­ral e po­lí­tico vi­ram-se in­cre­men­ta­dos nos anos da República. Em to­das as ci­da­des e mui­tas vi­las e al­deias do país de­pa­ramo-nos com ex­pe­ri­ên­cias de auto-or­ga­ni­za­ção des­por­tiva. O povo as­su­miu a cul­tura des­por­tiva que vi­nha das eli­tes e roubou‑a, che­gando a se de­sen­vol­ver uma ten­dên­cia as­so­ci­a­tiva po­pu­lar que des­co­lava em ju­lho de 1936, quando foi des­ca­be­çada pe­los gol­pis­tas. Desde en­tão, os mi­li­ta­res cons­pi­ra­do­res en­sai­a­ram po­lí­ti­cas fas­cis­tas de en­qua­dra­mento da ju­ven­tude e dos tem­pos li­vres no des­porto, mas essa é ou­tra história.

NOTAS

1. Andrés DOMÍNGUEZ ALMANSA, 2009: Historia so­cial do de­porte en Galicia: cul­tura de­por­tiva e mo­der­ni­dade, 1850- 1920, Vigo, Galaxia. 

2. El Correo Gallego, 11/7/1920.

3. El Correo Gallego, 2/4/1921.

4. El Correo Gallego, 12/5/1934.

5. O ato de inau­gu­ra­çom do Monumento ao Caminhante Desconhecido re­lata-se em El Correo Gallego, 3/7/1934.

6. El Correo Gallego, 9/7/1936

7. Roque SANFIZ ARIAS, 2019: “Febre no campo. Fútbol en Fene ata 1936”, Murguía. Revista Galega de Historia, 39 (2019), pp. 71–93.

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