Nas últimas semanas a Editorial Galaxia S.A. ocupou o centro de uma intensa polémica com acusações cruzadas, insultos, destituições e, seguindo as declarações de algumas pessoas implicadas, também a iminente intervenção dos tribunais. A sociedade mercantil viguesa é o mais parecido que temos na Galiza a uma editora grande, juntamente com as Edicións Xerais do grupo espanhol Anaya.
O conflito em questão –ou, ao menos, a sua fase mais aguda e pública–, nasceu com as declarações do escritor Alberto Ramos numa entrevista publicada em agosto no jornal online Praza.gal, a acusar Galaxia de publicar a sua novela Os corpos dos Romanov –como vencedora do prémio Repsol 2022– sem o prévio estabelecimento de relação contractual. Estas declarações suscitaram nas redes sociais uma espécie de Me Too em que muitas autoras galegas corroboraram o relato de Ramos nas suas próprias experiências.
O diretor do Galicia Confidencial, Xurxo Salgado, publicou nesse mesmo meio uma reportagem tentando esclarecer sobre o assunto das condições materiais das escritoras galegas. Da sua leitura logo se pegava uma ideia: a questão dos contratos e os direitos de autoria está praticamente resolvida no nosso campo editorial e, pelas palavras do presidente da Asociación Galega de Editoras (AGE) Quique Alvarellos, “todos os problemas, falando, podemos resolvê-los”.
O volume de vendas é tão baixo que, se as editoras tivessem que pagar a todas as autoras, seriam editados menos livros”
Dentro de algum tempo o projeto de investigação Livro Galego coordenado por Roberto Samartim, do Grupo de Estudos Territoriais da UdC, deitará não pouca luz sobre todas estas questões. Por enquanto, vamos lá ver se isto é mesmo assim.
Escrever, ser escritora
Táti Mancebo, empregada do mundo editorial desde há mais de três décadas atrás, trabalhou na Galaxia em 2021–22. Uma das tarefas lá assumidas, por indicação do conselho de administração, consistiu em recolher as queixas das autoras. “É um segredo aberto que em muitos casos os direitos nunca são pagos ou demoram meses a chegar”, para não falar dos eventos, lançamentos, deslocamentos assumidos pelas autoras sem ajudas de custo nem remuneração por parte das editoras. Mancebo dá uma chave: “o volume de vendas é tão baixo que, se as editoras tivessem que pagar a todas as autoras, seriam editados muitos menos livros”.
A jurista Ania González Castiñeira, perita em direito da cultura e advogada da Asociación de Escritoras e Escritores en Lingua Galega (AELG) tem elaborado vários relatórios para o Libro Branco daquela associação. Neles destaca aspectos como a obrigatoriedade de assinar um contrato escrito previamente a qualquer tipo de publicação, bem como uma série de verbas obrigatórias em qualquer contrato desse tipo. Nos contratos analisados identifica “um notável desencaixe com a norma legal vigente” e assinala práxis reprováveis como a imposição à autora, por parte da editora, da compra de um número de exemplares, a opacidade em relação ao destino dos exemplares sobrantes, a renovação automática –em si ilegal– do contrato, a demora no pagamento dos direitos autorais ou mesmo a inexistência deste. Quanto aos prémios literários, indica que “muitas convocatórias incumprem o quadro jurídico, contável e fiscal” correspondente, e chama a atenção para os certames em que a obra vencedora é posteriormente publicada. Nestes casos, a montante outorgada como prémio não pode ser interpretada como substituto dos direitos de autoria, mas como um adiantamento dos mesmos –devendo, portanto, render contas anualmente com o autor, o que em muitos casos não acontece–.
Ania González Castiñeira destaca a obrigatoriedade de assinar um contrato escrito previamente a qualquer tipo de publicação
A professora Cristina Martínez Tejero da USC, investigadora da Rede Galabra, tem atendido à situação das criadoras textuais no nosso país, efetuando uma série de inquéritos a escritoras e escritores com um total de 91 respostas.
Delas, menos de 10 se autoqualificam ‘escritoras’. Esta cifra, já por si cativa, ainda diminui observando a realidade material das produtoras: somam aproximadamente 5% as que atingem a remuneração mínima mensal (1.080 €/mês no Estado espanhol), sendo muitas mais as que declaram cobrar 0 € anuais pela sua atividade criadora, 11,1%. O grupo maior é o das que ingressam entre 0 e 500 € anuais, 44,4%.
Seguindo os indicadores de mercado do Instituto Galego das Cualificacións, dos 845.243 contratos laborais assinados na Galiza em 2022, só 59 deles foram para pessoas ocupadas na atividade de ‘Escritores’: menos de cinco contratos mensais.
Assim, ao não serem assalariadas, não contam com o amparo dos grandes sindicatos e o individualismo caraterístico da profissão tende a reproduzir-se, obrigando-as a enfrentar em solitário as más práticas caraterísticas do setor.
Têm, sim, o assessoramento jurídico da AELG, mas este não constitui na verdade um garante forte para os seus direitos e necessidades. Em primeiro lugar, esse serviço de assessoramento parece não atender nem uma mínima parte dos conflitos entre autoras e editoras, não só por uma fraqueza estrutural, mas por uma ausência de consultas: a própria Ania González Castiñeira declara no Libro Branco que o número total de solicitações recebidas de escritoras em 2021 foi 20. Lembrando as palavras de Mancebo, a AELG parece não contar com qualquer legitimidade ou referencialidade entre as nossas escritoras.
Por outro lado, acontece que o serviço jurídico oferecido às escritoras não vai além desse mero assessoramento, a AELG não intervém perante as editoras nem acompanha as autoras nos tribunais em eventuais vulnerações dos seus direitos: “isso é um assunto interno da relação autora-editora”, declara o presidente Cesáreo Sánchez. Sintomaticamente, noutro momento da conversa colocou o acento sobre a boa relação entre a AELG e a AGE, entendendo‑a como uma parceira no caminho da normalização linguística e cultural e não como uma organização com interesses potencialmente antagónicos aos das autoras.
A AELG não intervém perante as editoras nem acompanha as autoras nos tribunais em eventuais vulnerações dos seus direitos: “Isso é um assunto interno da relação autora-editora”, declara o presidente Cesáreo Sánchez
No seu entender, o problema das escritoras transcende o trato com as editoriais, pois é uma questão estrutural: a administração autonómica não promove hábitos leitores, empecendo o desenvolvimento da indústria. “O nosso convénio com a Xunta é o mesmo que há mais de 15 anos atrás, recebemos a mesma quantidade anual para fazer um trabalho que, na verdade, calhava ao próprio governo”. Assim, diz Sánchez, é impossível normalizar a figura da escritora e conseguir o funcionamento normal da indústria.
‘Xunta’ e PPdeG, responsáveis
A Consellería de Cultura há anos vem vangloriando-se de investir grandes quantidades de dinheiro na construção desses hábitos leitores, principalmente através do Plan de Mellora das Bibliotecas Escolares (PlaMBE), que tem feito das bibliotecas galegas as melhores do Estado aos olhos dos certames internacionais, a colocarem o nosso país nos primeiros lugares do globo.
Quase dois milhões de euros investidos no delineamento de uma imagem poderosa aos olhos da comunidade internacional, mas nenhum esforço dirigido para a integração real das bibliotecas e da leitura na vida das comunidades em que se inserem: o ritmo de avanço dos hábitos leitores na Galiza é o mesmo que no conjunto do Estado, ocupando a Galiza o 13º lugar entre as 18 comunidades autónomas estudadas pelo barómetro Hábitos de Lectura y Compra de Libros en España (2022).
Mesmo reconhecendo algum hipotético mérito ao departamento chefiado por Román Rodríguez no relativo aos hábitos leitores, a fraqueza estrutural identificada por todos os atores intervenientes aponta com clareza para um facto: os “hábitos leitores” promovidos não são em língua galega.
Promoção em precário
Este défice obriga a que a ajuda parta sempre de organismos públicos ou privados de menor capacidade como fundações ou câmaras municipais com boa vontade neste sentido.
Não raramente, especialmente no nosso país, esta boa vontade materializa-se na organização de prémios literários, o que de alguma maneira vem empecer o funcionamento “normal” do campo: as obras publicadas mediante prémios fintam os processos de revisão e correção próprios das editoras, sendo submetidos basicamente ao juízo e à aritmética –votações, maiorias– de pessoal não necessariamente profissional ou especialista; basta com representar, direta ou indiretamente, os interesses da(s) entidade(s) que convoca(m). O próprio Alberto Ramos tem declarado basear a sua atividade criativa na candidatura a prémios, contribuindo para a conformação de um cânone literário de alguma maneira distorcido ou, no mínimo, dirigido por empresas como a Repsol ou pelos distintos partidos no comando das câmaras municipais. Isto tudo além das más práticas já citadas e incluídas no Libro Branco da AELG.
Em definitivo, o campo editorial, com a sua caraterística aura boémia e sensível, com autoras malditas e mentes geniais, não é assim tão diferente. Podia ser qualquer outro setor com a sua precariedade, o seu abuso de poder, as suas relações desiguais, o seu assédio laboral e a sua discriminação machista. Um sistema disfuncional suportado sempre pelos mesmos ombros. Um tigre de papel, diria Mao. A sorte é que continua havendo vozes que se erguem e bocas que cospem contra os “deixar as coisas estar” e os “falando podemos resolvê-lo” que beneficiam sempre um só lado. Como a vida mesma.
O cheiro dos bastidores
Táti Mancebo foi diretora comercial da Editorial Galaxia S.A. e diretora geral de Merlín Comunicación, empresa também integrante do Grupo Galaxia. Num comunicado no seu blogue pessoal, esclarecia alguns aspectos do seu “despedimento, que considero injustíssimo e cruel” da editora, onde, afirma, “me destroçaram a vida por completo”. O mais destacado pode que seja, pela sua gravidade, a asseveração de que “durante 14 meses sofri assédio e discriminação duríssimos por parte do diretor geral da Editorial Galaxia”, Francisco Castro, “assim como do presidente e do conselheiro delegado”, Antón Vidal e Fco. Xavier Martínez Cobas.
Em conversa com o Novas da Galiza, Mancebo explica que previamente à sua entrada já existiam reticências de Castro em relação a ela. Num princípio, ocuparia a direção comercial, portanto subordinada a Castro, mas rejeitou a proposta do presidente, preocupada pelos entraves que a atitude negativa do diretor geral pudesse colocar. Só uns dias depois, Mancebo recebe uma chamada de Vidal oferecendo, além do anterior, a direção geral de Merlín Comunicación, de maneira a ficar no mesmo plano hierárquico que Castro. E aceitou.
Táti Mancebo: “Durante 14 meses sofri assédio e discriminação duríssimos por parte do diretor geral da Editorial Galaxia, assim como do presidente e do conselheiro delegado
Isto em setembro de 2021. A partir de então Táti Mancebo começou a trabalhar “12 horas todos os dias”, sendo remunerada e quotizando apenas pelos labores de diretora geral e “sem nenhuma relação legal com a Galaxia”. A sua tarefa principal consistiu na elaboração de um projeto de modernização para o grupo empresarial solicitar uma subvenção do IGAPE para a contratação de duas pessoas.
Após os 14 meses de constante dedicação, com a justificação preparada e só 2 dias antes da entrega, “o presidente cita-me para uma reunião e lá diz que o projeto vai ser mudado e que não se vai contratar ninguém”, sem acompanhar a negativa de qualquer explicação sobre o destino do dinheiro. A diretora de Merlín foi clara: o projeto era inviável sem a contratação e ela não dispunha de mais horas no dia para dedicar ao grupo Galaxia. Além disso, expressou que esse trato do apoio económico constituía uma ilegalidade. Em seguida, passou semanas sem receber tarefas nem qualquer comunicação do conselho de administração até que lhe foi notificado um expediente por uma “falta muito grave”, procurando que fosse ela a abandonar o navio pela porta traseira. Esta prática foi ativada “até onde eu sei, com 3 pessoas mais nos últimos anos em Galaxia”.