A conjuntura pandémica, que só por uns instantes aparentou ir mudá-lo tudo, é hoje apenas mais um trágico evento na cada vez mais longa história do Capital — tardio ou não. Porém, aquele instante de escuridade produziu alguns clarões que ultrapassaram os limites do circunstancial e parecem ir ficar connosco.
A Rede Galega de Estudos Queer (RGEQ) constituiu-se em 2020 como uma iniciativa de investigação no sentido mais abrangente do termo: não fazendo parte de qualquer instituição académica, acolhe um conjunto relativamente diverso de pessoas interessadas na teoria e na prática queer. Porém, no geral, está integrada maioritariamente por pesquisadoris em distintas áreas de conhecimento e com graus de experiência díspares, que entendem o trabalho científico como mais uma das formas de ação política que podem servir para examinar e desarticular as determinações do sistema sexo-género. A construção duma rede que permita partilhar experiências e levar para a frente projetos comuns sem os constrangimentos burocráticos (e políticos) das instituições universitárias tem-se demonstrado extremamente proveitosa nos três primeiros anos de existência da RGEQ.
Da RGEQ entende-se o trabalho científico como mais uma das formas de ação política que podem servir para examinar e desarticular as determinações do sistema sexo-género
Assim sendo, o I Congresso Internacional ‘Corpos, xénero e sexualidade’, organizado na Corunha em março de 2022, marcou a primeira grande atividade pública da RGEQ, reunindo investigadoris, artistas e ativistas da Galiza e doutros cantos da península para umas jornadas de reflexão e debate em volta dalgumas das questões mais prementes para a academia e o ativismo queer na atualidade. Se tudo der certo, em 2024 realizaremos o nosso II Congresso, para o qual estamos a trabalhar intensamente e que esperamos possa ser novamente um espaço de encontro e discussão para todes.
Ademais, a iniciativa da RGEQ começa a inspirar outras semelhantes nas periferias nacionais do estado espanhol, e com sorte poderemos ver proximamente o nascimento de organizações análogas que continuem a disputar o relato homonacionalista e metronormativo que vigora neste contexto político e territorial.
Galiza, nação ‘queer’?
A RGEQ nasce num contexto florescente no âmbito da política queer na Galiza. Não somos pioneires em quase nada e devemos muito a iniciativas que nos precedem, em todos os terrenos da vida intelectual, social e política galega ‒ por sinal, algumas delas integradas por pessoas que hoje fazem parte da Rede. Por citar alguns exemplos, revemo-nos na tradição ativista marcada simbolicamente pela manifestação organizada em Vigo pela Coordenadora de Coletivos Gay da Galiza no Dia do Orgulho de 1981 e que continua até à ação das Maribolheras Precárias ou Avante LGBT+, e também nos projetos de cariz mais académico como a efémera revista Fluxos (1998‒2000) ou os livros Queer-emos un mundo novo (Teresa Moure, 2012), Nós, xs inadaptadxs (ed. Daniel Amarelo, 2020) e A defunción dos sexos (Daniela Ferrández, 2022). Dos fanzines e revistas da década de 90 como ENBOGA ao Galicia, Nación Cuir da Galleira, do Festival Agrocuir da Ulloa às festas queer urbanas, o mito da Galiza (cishetero)patriarcal (ou matriarcal), atrasada e conservadora tem vindo a ser conscientemente desafiado a partir de espaços e estratégias diversas, apesar das evidentes resistências ainda presentes, quer nas instituições académicas quer nas organizações políticas.
Neste sentido, é felizmente que podemos dizer que a nossa esquerda nacional não parece ter sido muito influenciada pelas correntes mais reacionárias do essencialismo sexual e de género, que têm vindo a ocupar, nos últimos tempos, espaços significativos em diferentes âmbitos políticos tradicionalmente associados à esquerda. Por um lado, o ‘feminismo radical transexcludente’ (TERF no seu acrónimo anglófono), hoje constituído num movimento no seio do feminismo liberal que, entretanto, tem ganho uma importante presença no interior dum dos partidos mais relevantes do sistema político espanhol, com as consequências que isso tem também para a Galiza em vários níveis. Por outro, o papel dalgumas organizações pretensamente comunistas — minoritárias no conjunto do «movimento socialista», mas com alguma notoriedade ocasional no estado espanhol (e não só) — que têm instrumentalizado o ascenso generalizado do conservadorismo moral e das plataformas fascistas como via para a defesa duma postura reacionária no âmbito de organizações políticas de classe.
Seria hipócrita pensarmos em derrubar o sistema sexo-género sem pretendermos fazer o mesmo com as restantes determinações opressivas da modernidade, como podem ser a classe, o estado-nação ou a raça
Perante estes riscos, não é banal defendermos enxergar a realidade galega duma perspetiva queer (e vice-versa). Não por acaso a libertação nacional e a destruição da matriz cisheterosexual constroem numa temporalidade outra: uma utopia que não existe no presente, mas que também não se formula exclusivamente em termos de futuro nem procura raízes num passado ancestral. A Galiza (ainda) não é livre, da mesma forma que — como disse José Esteban Muñoz — (ainda) não somos queer, mas muitos dos processos implicados em ambas as lutas políticas podem ser interpretados com ferramentas conceituais em certa medida análogas.
(Ainda) não estamos todes: descolonizar o ‘queer’ (e o nacional)
Não é este o espaço para uma reflexão em volta da (re)introdução da teoria decolonial no espaço intelectual e político, sobre as suas potencialidades e perigos — aliás, a discussão é fértil e está a ser desenvolvida em múltiplas plataformas nos últimos tempos. Porém, deve poder sê-lo para reconhecer que um dos mais evidentes desafios dos projetos envolvidos na dissidência sexual na Galiza é a sua falta de diversidade noutros sentidos. Da mesma forma que qualquer proposta que interpretar a subalternidade da Galiza no contexto espanhol será insatisfatória se não tiver em conta a respetiva posição de poder que sustemos no cenário imperialista global, seria hipócrita pensarmos em derrubar o sistema sexo-género sem pretendermos fazer o mesmo com as restantes determinações opressivas da modernidade, como podem ser a classe, o estado-nação ou a raça.
Por outras palavras, o repto é como estudar o queer sem reificar e hipercodificar as suas manifestações e, igualmente, como estudar a Galiza (da Galiza, para a Galiza) sem essencializar a identidade nacional. Assumir uma abordagem queer (e decolonial) neste contexto requer problematizar as hegemonias cisheteropatriarcais e coloniais que constroem a Galiza e de que ela própria participa, e para esse fim precisamos também de desmantelar as hegemonias que os espaços queer galegos possam vir a consolidar. Todo contributo para continuarmos nesse caminho é muito bem-vindo.