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Línguas para não se entender

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Um dos mi­tos mais re­pe­ti­dos so­bre o plu­ri­lin­guismo na nossa so­ci­e­dade é aquele que afirma que “as lín­guas es­tão para se en­ten­der”. O axi­oma, evi­den­te­mente, não é ino­cente, como de­mos­tra o seu uso re­cor­rente para con­se­guir que uma fa­lante dum idi­oma me­no­ri­zado mude para o da sua in­ter­lo­cu­tora, por ser esta a “lín­gua co­mum” en­tre am­bas que per­mite “en­ten­der-se”. Contudo, às ve­zes pode re­sul­tar di­fí­cil com­ba­ter a sua su­posta ló­gica: se as lín­guas não es­tão para se en­ten­der, para quê então?

Para co­me­çar, a frase parte duma su­po­si­ção falsa: a de que o uso de lín­guas di­fe­ren­tes im­pede o en­ten­di­mento. Nunca na his­tó­ria a di­ver­si­dade lin­guís­tica im­pos­si­bi­li­tou um in­ter­cám­bio en­tre gru­pos hu­ma­nos. As ma­ri­nhei­ras eus­kal­du­nas e as ín­dias al­gon­qui­nas criá­rom um pid­gin para co­mer­ci­a­rem, e cen­tos de lín­guas não im­pe­dí­rom que o ara­bó­fono Ibn Battuta vi­a­jasse no sé­culo XIV por boa parte do mundo co­nhe­cido, da Guiné à China. Como vai im­pe­dir da­quela o va­len­ci­ano que uma fa­lante de cas­te­lhano saiba que pe­dir numa es­pla­nada em Gandia?

Além disso, é im­por­tante des­ta­car que a fun­ção das lín­guas não é en­ten­der-se, se­não co­mu­ni­car-se, e o en­ten­di­mento nem sem­pre é um ob­je­tivo da co­mu­ni­ca­ção. A la­tina que res­ponde “No ha­blo tu idi­oma” ao po­lí­cia es­ta­du­ni­dense ou a na­tiva que se nega a usar a lín­gua da tu­rista que busca uma in­di­ca­ção es­tão cer­ta­mente a co­mu­ni­car algo. E a sua men­sa­gem não se­ria tão forte se não bus­cas­sem não se­rem compreendidas. 

Na re­a­li­dade, qual­quer lín­gua é sus­ce­tí­vel de pro­vo­car, vo­lun­ta­ri­a­mente ou não, a falta de en­ten­di­mento. O lé­xico duma de­ter­mi­nada pro­fis­são, as fa­las ju­ve­nis ou os có­di­gos pes­so­ais iden­ti­fi­cam gru­pos hu­ma­nos ao tempo que os se­pa­ram do resto, pro­vo­cando por força a in­com­pre­en­são. Mesmo o or­gu­lho da fala pró­pria se cons­true so­bre aque­las pa­la­vras que cre­mos não com­par­ti­das com ou­tras pes­soas: na­cho, jato, quel, truta, pa­ta­ti­lhas, piru…

Mas exis­tem umas va­ri­e­da­des lin­guís­ti­cas cuja prin­ci­pal fi­na­li­dade é pre­ci­sa­mente a de não se­rem en­ten­di­das. Os crip­to­le­tos são fa­las se­cre­tas de­sen­vol­vi­das por co­le­ti­vos hu­ma­nos para evi­tar que as pes­soas alheias ao grupo (muito es­pe­ci­al­mente as au­to­ri­da­des) en­ten­dam as con­ver­sas. Não são lín­guas to­tal­mente in­de­pen­den­tes, se­não que usam a fala da co­mu­ni­dade para “re­tor­cer” o seu lé­xico e a sua gra­má­tica. Gírias como o verbo dos ar­gui­nas, a la­frada, o la­pi­zarro ou o ba­ra­lhete vol­vê­rom in­com­pre­en­sí­vel o ga­lego de can­tei­ras, al­va­néis, ces­tei­ras ou afiadoras.

Alguns ter­mos das gí­rias pas­sá­rom mesmo à lín­gua ge­ral das zo­nas onde se fa­la­vam, mas a me­dida que a ne­ces­si­dade de ocul­tar as con­ver­sas des­tes co­le­ti­vos foi min­guando, mui­tas des­tas fa­las se­cre­tas fô­rom per­dendo a sua ra­zão de ser e fi­cando como cu­ri­o­si­da­des lin­guís­ti­cas ou ele­men­tos iden­ti­tá­rios. A sua exis­tên­cia, po­rém, lem­bra-nos que não ser­mos en­ten­di­das pode ser tam­bém um dos va­lo­res que nos ou­tor­gue uma lín­gua. E me­lhor ainda se a pa­tega não in­terva frós.

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