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Quem ataca quem? O conflito da Ucrânia em perspetiva

por
Cimeira da NATO em 2021.

No mo­mento de es­cre­ver es­tas li­nhas, a ma­qui­na­ria de guerra do im­pe­ri­a­lismo, a po­de­rosa NATO, já se pre­pa­rou para com­ba­ter. Anunciou umha in­va­som cujo au­tor di­zia que nom se ia pro­du­zir e que, com efeito, nom se pro­du­ziu. Agora, após ter as­se­gu­rado ao mundo co­nhe­cer as in­ten­çons be­li­cis­tas da Rússia (data e hora in­cluí­das), Washington, Londres, Paris ou Madrid en­tram mais umha vez no jogo de des­co­nhe­cer o que acon­tece no ter­reno. A re­ti­rada de con­tin­gen­tes mi­li­ta­res rus­sos das fron­tei­ras ucra­ni­a­nas de acordo com o que ti­nha anun­ci­ado aber­ta­mente o pró­prio Kremlin: que es­ta­vam ali para re­a­li­za­rem exer­cí­cios mi­li­ta­res e que vol­ta­riam às suas ba­ses as­sim que se des­sem por terminados.

A re­a­li­dade nom con­diz com o dis­curso das po­tên­cias oci­den­tais so­bre o mundo. Mas de­pois de ter­mos as­sis­tido já à in­ven­çom de di­ver­sas ame­a­ças imi­nen­tes (da Jugoslávia às ar­mas de des­trui­çom ma­ciça do Iraque, pas­sando por Líbia e Síria), isto tam­bém nom é umha grande no­vi­dade. Se a NATO fosse umha cri­ança, po­de­ría­mos ainda ex­pli­car-lhe o que acon­tece com quem mente per­ma­nen­te­mente com a his­tó­ria do Pedro e o lobo. Mas esta or­ga­ni­za­çom nom é umha cri­ança. E, pior ainda, pa­rece ter à mao todo um exér­cito de meios de co­mu­ni­ca­çom cor­po­ra­ti­vos com todo o in­te­resse em acre­di­tar no seu dis­curso e em di­fundi-lo por toda a parte todo o tempo.

Num pa­ra­le­lismo pouco sur­pre­en­dente, a pró­pria cri­a­çom da NATO em 1949 res­pon­deu já a um des­ses co­nhe­ci­men­tos cer­tos que, po­rém, ja­mais se ve­ri­fi­cá­rom: que a Uniom Soviética da al­tura es­ta­ria pronta para lan­çar um ata­que so­bre a Europa com o ob­je­tivo de con­quistá-la. Como no caso da re­ti­rada de tro­pas que agora dim des­co­nhe­cer, as po­tên­cias que in­te­gram a NATO tam­bém pa­re­cê­rom nom ad­ver­tir o co­lapso da URSS e, por­tanto, o fim da «ame­aça» que jus­ti­fi­cava a sua exis­tên­cia. Portanto, dé­rom con­ti­nui­dade à ali­ança se­me­ando ba­ses e ins­ta­la­çons mi­li­ta­res polo mundo, com pre­fe­rên­cia para o cha­mado cinto de Wolfowitz (tra­tando de en­vol­ver, pre­ci­sa­mente, a vasta ex­ten­som da Rússia). Temos, ade­mais, o his­tó­rico da NATO no pós-Guerra Fria, que é elo­quente avondo para quem qui­ser olhar: nen­gumha das suas mis­sons foi de de­fesa. Bem ao con­trá­rio, fô­rom sem­pre de agres­som. Primeiro con­tra os paí­ses do bloco so­ci­a­lista e do Movimento dos Nom Alinhados; e, mais tarde, quando aquela es­tru­tu­ra­çom do mundo aca­bou por de­sa­pa­re­cer, con­tra paí­ses de go­ver­nos in­có­mo­dos ou que se ne­gá­rom a pre­gar-se à fo­lha de rota im­posta, in­va­ri­a­vel­mente, po­los Estados Unidos. E é isso, pre­ci­sa­mente, o que está em causa nesta crise ucraniana.

Nom se trata, como mui­tos meios apre­sen­tam, de umha crise nova, sur­gida em re­la­çom aos re­cen­tes mo­vi­men­tos de tro­pas rus­sas perto das fron­tei­ras da Ucrânia (mas den­tro de ter­ri­tó­rio russo). Mas tam­pouco de umha di­nâ­mica de ve­lha guerra ir­re­so­lú­vel que afunde as suas raí­zes nos tem­pos do czar Pedro I sem qual­quer va­ri­a­çom. Esses ele­men­tos exis­tem, é claro, mas o ano zero desta crise é muito mais re­cente. Em 2014, com umha Ucrânia que vi­nha de re­ce­ber a ené­sima ne­ga­tiva da UE a abrir-lhe as por­tas, vol­tava no­va­mente a olhar para umha Rússia quase re­cu­pe­rada da ter­rí­vel dé­cada de des­man­te­la­mento que foi 1990 e com boas pro­je­çons de fu­turo. O im­pe­ri­a­lismo alen­tou, or­ga­ni­zou, ar­mou e deu co­ber­tura po­lí­tica, di­plo­má­tica e me­diá­tica a gru­pos de ex­trema di­reita e aber­ta­mente neo-na­zis­tas que tam­bém nom es­con­diam as suas sim­pa­tias por co­la­bo­ra­ci­o­nis­tas da Alemanha nazi como Stepan Bandera ou pola Waffen SS Galizien, nem a sua an­ti­pa­tia vis­ce­ral por qual­quer cousa que chei­rar a russo. O ob­je­tivo era mu­dar o go­verno le­gí­timo da Ucrânia que li­de­rava aquela vi­ra­gem por um ou­tro que, sem pre­ten­der ve­ri­fi­car a sua en­trada na UE, nom fosse cair de volta na ór­bita de Moscovo, e pu­desse aca­bar con­ver­tendo-se em mais umha pe­dra do muro de ba­ses mi­li­ta­res a cir­cun­dar Rússia. A fór­mula es­co­lhida —baixo o nome de Euromaidan— foi umha des­sas re­vo­lu­çons co­lo­ri­das que apa­nham todo o apoio dos gran­des im­pé­rios me­diá­ti­cos, con­ver­tem pre­si­den­tes elei­tos em ini­mi­gos pú­bli­cos que todo o mundo de­seja ver em pri­som  ou fu­gi­dos, e ser­vem para jus­ti­fi­car san­çons, em­bar­gos e todo tipo de ata­ques eco­nó­mi­cos e po­lí­ti­cos à vista, en­quanto os ata­ques de força —no caso, pa­ra­mi­li­ta­res— se dam à socapa. 

Tropas bri­tá­ni­cas às or­dens da NATO.

A vi­tó­ria da­quela ope­ra­çom apa­ren­te­mente es­pon­tâ­nea e po­pu­lar, mas na re­a­li­dade es­tri­ta­mente im­pe­ri­a­lista, dei­xou, com efeito, um novo go­verno a ocu­par Kiev, for­mado por gru­pús­cu­los fas­cis­tas in­cha­dos, mas in­te­li­gen­tes o su­fi­ci­ente para ves­ti­rem al­guns dos seus mem­bros de fato e gra­vata. O novo re­gime ucra­ni­ano ti­nha, numha mao, no­vos di­ri­gen­tes pró-eu­ro­peus re­ce­bi­dos ime­di­a­ta­mente em Bruxelas e Washington; e na ou­tra, ne­o­na­zis­tas que pas­sá­rom a di­ri­gir o exér­cito e a in­te­grar ba­ta­lhons pa­ra­mi­li­ta­res em ope­ra­çons de lim­peza de toda dis­si­dên­cia po­lí­tica —que se con­cen­trou, so­bre­todo, nas áreas de mai­o­ria russa da Crimeia e da re­giom in­dus­trial do Donbass. A or­ga­ni­za­çom dessa dis­si­dên­cia anti-gol­pista (e, em grande me­dida, tam­bém an­ti­fas­cista) cris­ta­li­zou em re­pú­bli­cas auto-pro­cla­ma­das em três des­ses dis­tri­tos (Crimeia, Donetsk e Lugansk), dos que só o pri­meiro ce­le­brou um re­fe­rendo de rein­te­gra­çom na Rússia, que ob­tivo 95% do voto favorável.

As ope­ra­çons de re­pres­som de­sa­ta­das por esse novo re­gime —a base de assassiNATOs ex­tra-ju­di­ci­ais, mas­sa­cres como a da casa dos sin­di­ca­tos de Odessa, ou bom­bar­de­a­men­tos ma­ci­ços con­tra mi­lí­cias po­pu­la­res e al­vos ci­vis— dam forma à única guerra que ver­da­dei­ra­mente se vive na Ucrânia. Umha guerra em que, desde esse 2014 até hoje, Kiev con­ti­nuou a re­pres­som cada dia; Moscovo, en­vol­vido já na guerra sí­ria, li­mi­tou as suas açons ao en­vio de su­pri­men­tos e ao apoio di­plo­má­tico às re­pú­bli­cas po­pu­la­res. Ocidente, por sua vez, de­di­cou-se a apa­gar os fo­cos me­diá­ti­cos para  ne­go­ciar com o novo po­der ucra­ni­ano a sua in­cor­po­ra­çom à NATO.

A imi­nente cris­ta­li­za­çom desse pro­cesso de en­trada, que po­ria ins­ta­la­çons da Aliança Atlântica a um tiro de pe­dra de Moscovo, é ape­nas o de­to­nante desta nova fase quente da crise que, como foi dito, leva já anos acima da mesa, mesmo que os meios que agora fam soar os tam­bo­res da guerra nom lhe te­nham pres­tado qual­quer aten­çom. Umha Ucrânia na ór­bita atlân­tica nom só rom­pe­ria de ma­neira de­fi­ni­tiva os acor­dos de Minsk de 2015 (que vi­sa­vam dar umha saída po­lí­tica à si­tu­a­çom), como tam­bém os com­pro­mis­sos de nom ex­pan­som da NATO para o leste a que James Baker e Mikhail Gorbatchov te­riam che­gado no seu dia e que fô­rom es­sen­ci­ais para o fi­nal da Guerra Fria.

A imi­nente cris­ta­li­za­çom do pro­cesso de en­trada na NATO da Ucrânia, que po­ria ins­ta­la­çons da Aliança Atlântica a um tiro de pe­dra de Moscovo, é ape­nas o de­to­nante desta nova fase quente da crise que leva já anos acima da mesa

Por ou­tra parte, de­ve­ria re­sul­tar evi­dente que esse alar­ga­mento serve mais aos in­te­res­ses dos Estados Unidos do que aos eu­ro­peus. Afinal, a he­ge­mo­nia que essa ali­ança mi­li­tar con­so­lida é a de Washington. A aná­lise, po­rém, nom pode li­mi­tar-se a de­ci­frar em que me­dida a he­ge­mo­nia norte-ame­ri­cana é pro­te­gida. Sobretodo por­que a con­tes­ta­çom dessa he­ge­mo­nia nom pro­cede ape­nas da Rússia, mas dum con­junto de po­tên­cias emer­gen­tes que apos­tam na so­be­ra­nia (da China ao Irám), e dou­tros fo­cos re­sis­ten­tes (de Cuba à Palestina, pas­sando pola Venezuela ou a Síria). Por ou­tras pa­la­vras: por­que nom é só a Rússia a fa­lar de umha nova or­dem mun­dial mul­ti­po­lar e sem um po­der ubí­quo in­con­tor­ná­vel, que é o maior te­mor duns Estados Unidos que há me­nos de trinta anos che­gá­rom a pro­cla­mar, tam em­po­la­da­mente, o «Século Americano». O es­copo tem de ser, ne­ces­sa­ri­a­mente, mais amplo. 

A aná­lise nom pode li­mi­tar-se a de­ci­frar em que me­dida a he­ge­mo­nia nor­te­a­me­ri­cana é pro­te­gida. Sobretodo por­que a con­tes­ta­çom dessa he­ge­mo­nia nom pro­cede ape­nas da Rússia, mas dum con­junto de po­tên­cias emer­gen­tes que apos­tam na so­be­ra­nia e dou­tros fo­cos resistentes

Mesmo se o con­flito nom de­fla­grar —em cujo caso todo o mundo perde—, o lu­gar que mais sen­ti­ria os efei­tos dum novo sta­tus de hos­ti­li­da­des se­ria a Europa, que con­ti­nua em grande me­dida de­pen­dente do gás russo. Os Estados Unidos, em troca, ga­nha­riam um mer­cado para ex­por­tar o seu gás com umha enorme mar­gem de lu­cro, ao que ha­ve­ria ainda que so­mar os cus­tos do trans­porte. Polo mo­mento, o grande ca­pi­tal eu­ro­peu pa­rece sen­tir-se à von­tade num mo­delo em que as suas em­prei­ta­das im­pe­ri­a­lis­tas de­vem pe­dir per­misso a Washington an­tes de co­me­çar, e os go­ver­nos da Uniom Europeia pa­re­cem dis­pos­tos a cor­rer os ris­cos desse ce­ná­rio de volta ao pas­sado em troca dum pe­daço do bolo. Mas o bloco im­pe­ri­a­lista do Atlântico Norte fai anos que mete água. Nem Paris, cuja aposta nu­clear a tem feito me­nos de­pen­dente do gás; nem Berlim mos­tram o en­tu­si­asmo dou­tras ope­ra­çons im­pe­ri­a­lis­tas. Londres tam­pouco pa­rece es­que­cer a ne­ga­tiva de Washington a in­clui-lo na par­ce­ria mi­li­tar com a Austrália para con­tra­pe­sar o cres­cente po­der da China. E ou­tros go­ver­nos eu­ro­cép­ti­cos, como o da Hungria, já co­me­çá­rom a lem­brar que há um di­reito in­ter­na­ci­o­nal para ser res­pei­tado, polo me­nos nas aparências.

Há umhas dé­ca­das, umha re­fle­xom como esta te­ria sido, com toda pro­ba­bi­li­dade, umha cró­nica de fei­tos con­su­ma­dos. Hoje, po­rém, o ta­bu­leiro está bem mais aberto, e as pre­di­çons só po­dem ser con­je­tu­ras. Por en­quanto, o alar­ga­mento da NATO nom se ve­ri­fi­cou. Mas umha cousa já sa­be­mos: que com a pers­pe­tiva de umha guerra que en­vol­ve­ria di­re­ta­mente qua­tro po­tên­cias nu­cle­a­res, nom pa­rece que rom­per pac­tos, acor­dos e com­pro­mis­sos seja boa es­tra­té­gia para re­bai­xar tensons.

Nota: Esta colaboraçom foi escrita antes do reconhecimento por parte da Rússia das repúblicas de Donetsk e Lugansk e da sua posterior intervençom militar.

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