Contrariamente ao que muitas pessoas possam pensar, o problema dos refugiados não é novo. A maioria das pessoas refugiadas em Portugal, mas também no Estado espanhol, provêm do continente africano. O Conselho Português para os Refugiados é a principal organização em Portugal responsável pela assistência para as pessoas requerentes de asilo que chegam a Lisboa. A aprendizagem da língua portuguesa é fundamental no processo de inclusão mas não só: a aprendizagem da língua torna-se quase uma terapia. Ângelo Merayo, professor de português no CPR descobre-nos uma realidade muito mais ampla através do olhar de alguém que, com o seu trabalho, põe nome a milhares de pessoas que se veem obrigadas a fugir.
Para começar, e para nos situarmos, queria que fizesses uma radiografia da situação das pessoas refugiadas em Portugal.
Da situação das pessoas refugiadas tem-se falado muito no último ano, por causa da guerra na Síria e a crise humanitária que está a afetar milhões de pessoas, mas pessoas refugiadas tem havido sempre. Gostaria de clarificar: um refugiado é a pessoa que tem o estatuto de refugiado, mas muitas pessoas não o têm e são requerentes de asilo, é dizer, estão à espera de receber uma resposta ao pedido de proteção internacional
Em Portugal há muitos requerentes do continente africano, eu acho que isto se deve, em parte, à estreita relação histórica que existe com África. Em Portugal há requerentes do Mali, da Guiné, da Serra Leoa, da Gâmbia, etc. A questão dos refugiados não é nova.
"Nos países do chamado 'primeiro mundo' vemos a África como uma única realidade onde só acontecem desastres. Acho que esta normalização provoca uma enorme falta de sensibilidade"
Então, qual é a nacionalidade que mais requer asilo em Portugal na atualidade?
Em 2015 chegaram muitas pessoas da Ucrânia que fugiam da guerra e vieram a Portugal porque já existiam laços. Existe uma importante comunidade imigrante ucraniana que chegou a partir de 1990. Quando já existe uma comunidade do teu país, família, amigos, o acolhimento é mais fácil.
No ano passado também chegaram muitos paquistaneses, no entanto, a chegada de refugiados de países de África, como o Mali, a Guiné-Conacri ou o Congo, é constante.
Fala-se muito dos refugiados procedentes da Síria e não tanto dos refugiados da Serra Leoa, por exemplo. Por quê?
A meu ver, na Europa existe uma normalização do continente africano como palco de miséria, fome e guerra. A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi, que recomendo ler, tem um TED talk que fala dos perigos de “uma história única”. Nos países do chamado ‘primeiro mundo’ vemos a África como uma única realidade onde só acontecem desastres. Acho que esta normalização provoca uma enorme falta de sensibilidade em relação aos africanos. Por exemplo: a imagem de Aylan, a criança curda morta no Mediterrâneo, deu a volta ao mundo. Há dois meses, produziu-se a mesma imagem nas costas espanholas, mas o protagonista era um menino negro, africano. Passou totalmente despercebido.
Por quê achas acontece isto?
O racismo é, a meu ver, uma das causas, os sírios são vistos como semelhantes aos olhos do “europeu comum”. No entanto, eu gostaria de partilhar esta reflexão: quantos africanos morreram no Mediterrâneo nos últimos 20 anos? A situação de crise humanitária no Médio Oriente é terrível, mas quantos conflitos esquecidos existem em África? Agora o foco dos média está na Síria e neste sentido preocupa-se que a sensibilização da população dependa da origem ou da cor da pele. Para quem trabalhamos com estas pessoas, todas são iguais e todas merecem proteção.
“Devemos perguntar-nos como iríamos reagir nós numa situação semelhante. Por muito diferentes que possamos parecer, as pessoas somos muito semelhantes"
Falemos agora da repressão para travar o fluxo de refugiados. Qual o papel que jogam aqui países como a Turquia ou Marrocos?
Jogam um papel muito importante, mais do que possamos pensar, são os encarregados de fazer o trabalho sujo à Europa. A União Europeia negoceia quotas de refugiados com os estados membros mas ao mesmo tempo assina com a Turquia um acordo que viola direitos humanos e leis internacionais para reter as pessoas fora das suas fronteiras.
Que diferenças, em termos gerais, existem na política aplicada por Espanha e por Portugal a requerentes de asilo?
Bem, no último ano Portugal foi um dos países mais comprometidos com a recolocação e dos que assumiu as quotas mais altas, tendo em conta a população. Nós ficamos neste cantinho da Europa, não recebemos tantas pessoas como a Alemanha, também não estamos tão próximos das áreas de conflito como a Grécia.
Penso que em Portugal existe uma maior sensibilidade por parte das instituições. Devemos lembrar que o atual secretário das Nações Unidas é português e o Presidente da República visitou recentemente o centro de acolhimento para refugiados.
Uma questão diferente é que Portugal não executa deportações, como Espanha. As pessoas que têm uma resposta negativa, quando todos os recursos esgotam, recebem uma notificação de abandono voluntário do território.
Quais são as características comuns que têm os teus alunos?
É impossível traçar um perfil. Eu costumo dizer que se neste momento caísse uma bomba onde nós moramos e todos os sobreviventes tivessem que fugir, haveria pessoas de diversas procedências sociais, pessoas com cursos universitários e pessoas sem habilitações básicas, pessoas com família, sozinhas, de diferentes idades, etc. Isso é um refugiado, e é por isso que o processo de inclusão é diferente para cada pessoa.
“Nas minhas aulas há pessoas com habilitações muito diversas: de pessoas que nom frequentaram a escola a responsáveis políticos”
Muitas pessoas sofrem situações de stress pós-traumático, depressões, etc., por causa das situações vividas, isto é mais um desafio para as nossas aulas. A questão administrativa também condiciona muito, a resposta que obtenham ao pedido de asilo, se esta é positiva ou negativa. Acho que devemos perguntar-nos como iríamos reagir nós numa situação semelhante. Por muito diferentes que possamos parecer, as pessoas somos muito semelhantes. A palavra-chave é “empatia”, pensar que podias ser tu.
Centramo-nos no teu trabalho. Era a primeira vez que trabalhavas dando aulas a refugiados, é muito diferente?
Eu sou professor de português, antes tinha dado aulas de português e espanhol na Galiza e aqui em Portugal, em centros de línguas e empresas. O trabalho que estou a fazer agora é, genuinamente, ensinar uma língua estrangeira.
Nas minhas aulas há pessoas que chegam sem saber uma só palavra de português e pessoas com habilitações muito diversas: de pessoas que nunca puderam frequentar a escola a médicos, professores, jornalistas ou responsáveis políticos. Tudo isto na mesma turma.

Como é que são estas aulas?
São umas horas de partilha de experiências, não são um espaço triste. Nas aulas conseguimos abstrair-nos dos problemas, é um espaço quase terapêutico e isto para nós é fundamental. E não ensinamos só a língua, também a cultura, oferecemos instrumentos para a inclusão.
“As aulas de português não são um espaço triste, são quase um espaço terapêutico”
Os programas de formação têm uma componente sociocultural. Organizamos passeios em Lisboa e Portugal, visitamos museus, descobrimos a localização dos serviços, onde está o hospital ou a segurança social, por exemplo. Em definitiva, a língua é a ferramenta básica para construírem uma vida em Portugal.
O dia do passeio é sempre muito alegre. Alguns alunos falam destes passeios como o dia mais feliz desde a chegada a Portugal, um dia em que “não pensaram”, nem na fugida, nem nas pessoas que deixaram atrás. Nestas atividades começam a estreitar relações, até esse momento muitos nem sabem o nome dos colegas e chamam-se pelo nome do país: “Mali!”, “Congo!”.
Trabalhar com pessoas refugiadas tem que comportar uma carga emocional muito forte. Como consegues trabalhar com esta carga?
Na verdade não tenho tempo para assimilar tudo, é tudo tão rápido… Só consigo reparar quando tomo alguma distância. Há histórias duríssimas, menores de idade que chegam sozinhos, etc.
Há um ano uma jornalista fez uma reportagem para a rádio sobre o trabalho que desenvolvemos na casa de acolhimento para crianças refugiadas. A minha colega professora recomendou-me ouvi-la, quando estivesse sozinho e tranquilo em casa. Pela primeira vez em sete meses, chorei e chorei como uma criança. Consegui ver com distância e pensei, como é possível que no meu dia a dia possa conviver com estas realidades?
Contudo, este trabalho tem recompensas enormes. Um pequeno exemplo, um dia numa aula estava a explicar como funciona o verbo gostar e pedi para construírem frases com ele. Começou um aluno: “Eu gosto das aulas de português”, e outro: “eu gosto do professor de português” e começaram todos a bater palmas. No meu último aniversário trouxeram-me um bolo, chocolates, rebuçados. Encontrar, por acaso, algum ex-aluno nos transportes, ou na rua, é sempre uma alegria.
É muito lindo pensar que com o teu trabalho podes fazer a diferença na vida de alguém e a gratidão das pessoas compensa tudo.
O teu trabalho também tem uma dimensão artística, não é?
O CPR iniciou em 2003, no âmbito do ensino do português, um programa de teatro e língua que nos últimos três anos recebeu o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian. O projeto “Refúgio e Teatro”, coordenado pela professora Isabel Galvão e com a direção artística da encenadora e atriz Sofia Cabrita, oferece sessões de expressão dramática semanais, abertas a todos os refugiados, e um grupo de teatro amador, o “RefugiActo”.
Mais recentemente, em 2015, iniciámos um segundo projeto, do qual sou coordenador. Um programa de artes visuais para jovens refugiados, com a parceria de escolas, artistas e outras entidades. O “Refúgio e Arte” conta com a direção artística do ilustrador Sérgio Condeço e faz parte do programa PARTIS da Fundação Calouste Gulbenkian.
As práticas artísticas são uma mais-valia para a aprendizagem da língua e uma ferramenta preciosa para a inclusão social.
Por último: o que aprendes dos teus alunos?
Devo dizer que é uma sorte trabalhar com a minha equipa. A minha colega, a professora Isabel Galvão, trabalha há 20 anos com pessoas refugiadas e costuma dizer que o nosso trabalho é um processo de ensino e aprendizagem. Este processo é bidirecional, entre o professor e os alunos.
Aprendo muitas coisas sobre as diferentes línguas do mundo e também questões culturais que podem causar mal-entendidos. Por exemplo; em alguns países africanos as pessoas não olham nos olhos quando falam com outras pessoas de mais idade ou como sinal de respeito, um comportamento que para nós pode significar falta de sinceridade.
Aprendo, e experimento, comidas diferentes. Recentemente, nas aulas de português, criámos um blogue onde partilhamos receitas dos diferentes países.
Sobretudo, aprendi que por muitas diferenças aparentes que tenhamos: cultura, crenças, etc., somos muito semelhantes, há sempre muitas mais coisas que nos unem do que as que nos separam.