Periódico galego de informaçom crítica

Mutiladas (e II)

por
sa­brina gevaerd

[Mutilar: (1) Privar dum mem­bro ou dal­gumha parte do corpo.]

O he­te­ro­pa­tri­ar­cado mu­tila o corpo das mu­lhe­res em nome da ci­ên­cia. Hoje e aqui, em hos­pi­tais do su­posto mundo de­sen­vol­vido, exis­tem ca­sos de am­pu­ta­çom de clí­to­ris a be­bés in­ter­se­xu­ais com ge­ni­tais nom nor­ma­ti­vos; de ex­tir­pa­çom da prós­tata a mu­lhe­res que eja­cu­lam em pleno or­gasmo; de eli­mi­na­çom do útero e dos ová­rios a mu­lhe­res sem do­en­ças ma­lig­nas as­so­ci­a­das. Há muito tempo que as nor­mas de gé­nero e da he­te­ros­se­xu­a­li­dade fô­rom tra­du­zi­das a nor­mas mé­di­cas e, como con­sequên­cia, a me­di­cina re­la­ci­ona-se vi­o­len­ta­mente com os nos­sos corpos.

No Estado es­pa­nhol, cada ano pra­ti­cam-se 50.000 his­te­rec­to­mias, umha ope­ra­çom ci­rúr­gica que con­siste na ex­tir­pa­çom do útero ou parte dele. Os es­tu­dos que ava­lam es­tes da­dos con­fir­mam, por umha banda, que só 4 de cada 10 his­te­rec­to­mias se re­a­li­zam quando nom há al­ter­na­tiva: em ca­sos de he­mor­ra­gias muito in­ten­sas ou de cân­cer de útero (fre­quen­te­mente acom­pa­nhado de cân­cer de cér­vix, de ová­rios, de en­do­mé­trio ou de trom­pas de fa­ló­pio). Pola con­tra, as­si­na­lam que à mai­o­ria de mu­lhe­res às que se lhes ex­tirpa a ma­triz so­frem en­fer­mi­da­des be­nig­nas como a en­do­me­tri­o­ses, mi­o­mas, tu­mo­res nom can­ce­rí­ge­nos ou in­tensa dor pél­vica, do­en­ças que po­de­riam tra­tar-se em mui­tos ca­sos, e es­pe­ci­al­mente em pri­meira ins­tân­cia, dum jeito me­nos in­va­sivo e sem re­sul­ta­dos ir­re­ver­sí­veis. De facto, do pró­prio âm­bito da saúde as­se­gu­ram que as his­te­rec­to­mias para es­tes ca­sos es­tám a des­cen­der res­peito há uns anos e que um fa­tor de­ter­mi­nante na mu­dança de ten­dên­cia está a ser a in­for­ma­çom so­bre as al­ter­na­ti­vas exis­ten­tes que ma­ne­jam al­gu­mas pa­ci­en­tes e o pes­soal mé­dico mais novo.

à maioria de mulheres às que se lhes extirpa a matriz sofrem enfermidades benignas como a endometrioses, miomas, tumores nom cancerígenos ou intensa dor pélvica, doenças que poderiam tratar-se em muitos casos, e especialmente em primeira instância, dum jeito menos invasivo e sem resultados irreversíveis.

Os es­tu­dos tam­bém con­fir­mam que mui­tas das his­te­rec­to­mias que se po­de­riam evi­tar se re­a­li­zam em mu­lhe­res com pós-me­no­pausa, a etapa pos­te­rior à che­gada da me­no­pausa e que dura até os 65 anos, apro­xi­ma­da­mente. Na ci­ên­cia e na me­di­cina se­gue-se a pro­mo­ver a ideia de que as mu­lhe­res so­mos, ante todo, se­res re­pro­du­to­res, umha men­tira an­dro­cén­trica que deixa fora da eti­queta ‘mu­lher’ a mui­tas de nós. Às trans; às que nom so­mos fér­teis; a al­gu­mas mu­lhe­res in­ter­se­xu­ais; às que tem­po­ral­mente nom te­mos, ou nom ti­ve­mos, a mens­tru­a­çom; às mu­lhe­res com me­no­pausa… E, ade­mais, di­vide os nos­sos cor­pos em sau­dá­veis ou en­fer­mos em fun­çom da nossa ca­pa­ci­dade de fi­car grá­vi­das. Com a che­gada da me­no­pausa e o cesse da fun­çom re­pro­du­tiva, a me­di­cina con­si­dera que o nosso corpo pro­duz al­te­ra­çons que, com o tempo, po­dem de­ri­var em do­ença. E é neste con­texto em que apa­re­cem os so­bre­tra­ta­men­tos: re­co­men­da­çons mé­di­cas para ex­tir­par o útero (e os ová­rios) em ca­sos de do­en­ças be­nig­nas baixo o ar­gu­mento da pouca fun­çom hor­mo­nal da ma­triz e pe­rante a pos­sí­vel apa­ri­çom de cân­cer ou tu­mo­res no fu­turo, su­ges­tons que non se pro­po­nhem a mu­lhe­res com pos­si­bi­li­da­des de fi­ca­rem grá­vi­das, e me­nos, se ainda nom ti­vé­rom des­cen­dên­cia. Se fa­ze­mos cál­cu­los se­gundo os da­dos dis­po­ní­veis, cada ano pra­ti­cam-se no Estado es­pa­nhol umhas 30.000 his­te­rec­to­mias para tra­tar do­en­ças be­nig­nas. Extirpaçons que se es­tám a pra­ti­car sem in­ves­ti­ga­çoms so­bre os efei­tos fí­si­cos e psi­co­ló­gi­cos des­tes tra­ta­men­tos nos nos­sos cor­pos, sem es­tu­dos ba­se­a­dos em evi­dên­cias ci­en­tí­fi­cas que com­pa­rem os ris­cos e os be­ne­fí­cios nes­tes ca­sos e sem in­for­ma­çom su­fi­ci­ente, da­quela, para o con­sen­ti­mento re­al­mente informado.

Nomear e de­nun­ciar es­tas prá­ti­cas sig­ni­fica apos­tar, mais umha vez, na so­ro­ri­dade en­tre nós. Solidariedade cara às mu­lhe­res às que se lhes ne­gou con­ser­var o útero ainda exis­tindo essa pos­si­bi­li­dade; cara às que, sem ou­tra al­ter­na­tiva que a da ex­tir­pa­çom, nom se sen­tí­rom acom­pa­nha­das nem an­tes nem de­pois da in­ter­ven­çom. Apoio mú­tuo cara às que nas con­sul­tas pós-ope­ra­tó­rias nom se atre­vé­rom a quei­xar-se da in­con­ti­nên­cia, das do­res nas re­la­çom se­xu­ais ou da perda do pra­zer; cara às que con­tá­rom que se sen­tiam tris­tes, ra­ras ou in­tran­qui­las de­pois da his­te­rec­to­mia e saí­rom do con­sul­tó­rio com re­cei­tas para psi­co­fár­ma­cos (hoje, na Uniom Europea, o 85% deste tipo de me­di­ca­men­tos é con­su­mido por mulheres).

Vamos corroborando, também, que a luita por conseguir outra relaçom da ciência e a medicina com os nossos corpos só é possível se é coletiva e de distintos lugares.

Ao longo do nosso his­to­rial mé­dico imos com­pro­vando que o pa­tri­ar­cado ha­bita nos cen­tros de saúde e que ali con­vive em guerra com ali­a­das im­pres­cin­dí­veis, pro­fis­si­o­nais que apos­tam a diá­rio em mu­dar as nor­mas que re­gem o fun­ci­o­na­mento das ins­ti­tu­çons mé­di­cas. Vamos cor­ro­bo­rando, tam­bém, que a luita por con­se­guir ou­tra re­la­çom da ci­ên­cia e a me­di­cina com os nos­sos cor­pos só é pos­sí­vel se é co­le­tiva e de dis­tin­tos lu­ga­res. Luitar co­nhe­cendo os nos­sos di­rei­tos e de­nun­ci­ando as más pra­xis. Exigindo in­for­ma­çom e bom trato. Gerando e com­par­tindo co­nhe­ci­mento po­lí­tico (e de re­sis­tên­cia) ba­se­ado nas nos­sas ex­pe­ri­en­cias. Querendo os nos­sos cor­pos. Perguntando as ve­zes que faga falta quando nom en­ten­da­mos o que nos ex­plica o pes­soal mé­dico. Assumindo-nos su­jei­tas de di­reito. Pedindo umha se­gunda opi­niom quando nos re­co­men­dem ser mutiladas.

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