Umha das diferenças entre o modelo processual acusatório e o inquisitivo é o objeto de cadanseu processo. Este conceito de “objeto do processo” refere-se a aquilo sobre o que versa o julgamento. Nos sistemas acusatórios próprios dos sistemas políticos liberais, o objeto do processo é um determinado feito delituoso cometido por alguém, como pode ser um roubo ou um homicídio. Por contra, nos sistemas inquisitivos o objeto do processo nom costuma ser um determinado feito, senom umha determinada pessoa. O importante nom é tanto esclarecer um feito delituoso, mas indagar sobre a condiçom de umha pessoa.
Evidentemente, as consequências de um ou de outro modelo som claras: no primeiro, a presunçom de inocência tem plena vigência; no outro, entra em jogo umha presunçom de culpabilidade. Num caso, é a acusaçom quem deve provar que a pessoa acusada é autora dum determinado delito; no outro, a carga da prova recai na pessoa acusada, que deve demonstrar a sua inocência, nom tanto frente a umha determinada açom que lhe é imputada, senom mesmo no plano ontológico; quer dizer, deve demonstrar que é inocente.
No dia de hoje ainda se conseguem alviscar reminiscências do sistema inquisitivo. Tal acontece, por exemplo, quando recai sobre umha pessoa acusada o sambenito de terrorista. A partir desse momento, cada açom, cada opiniom manifestada e cada exercício até de direitos reconhecidos polo ordenamento jurídico por parte de tais pessoas passam a ter um significado diferente, que os situa por fora da lei. Isto foi o que aconteceu na Operaçom Jaro, que se saldou há algumhas semanas com a absolviçom das doze acusadas.
Quando recai sobre umha pessoa o sambenito de terrorista, cada açom, cada opiniom manifestada e cada exercício até de direitos reconhecidos polo ordenamento jurídico passam a ter um significado diferente, que os situa por fora da lei
Na declaraçom pericial de inteligência chave dessa “operaçom”, o agente declarante – que presumivelmente estivo à frente das investigaçons – sementou a dúvida em determinadas ocasions. De forma que o que eram manifestaçons de solidariedade com pessoas presas, a financiaçom de assistência letrada a pessoas processadas ou meras parabenizaçons de aniversários a militantes de diversos momentos, tornam-se açons integradas numha férrea disciplina organizativa dirigida a justificar, exaltar e promover a subversom através de métodos violentos e indiscriminados. Nessa pulsom por criar um relato que situe os acusados fora da comunidade de direito, chega-se a ver na celebraçom do Dia da Galiza Combatente um chamamento a realizar todo o tipo de atividades ilegais destinadas a conseguir objetivos políticos que, por descontado, som ilegítimos.
Poderá pensar quem está a ler que quem escreve agocha o elemento fundamental que daria sentido ao que é descrito como um auténtico relato delirante. Talvez algum tecnicismo ou algumha explicaçom mais complexa da situaçom. Nada mais longe da realidade. Durante o processo ficou esclarecido que os indícios com que contavam as brigadas de inteligência implicadas apontavam que era possível os acusados terem cometido delitos de injúrias à coroa, de enaltecimento do terrorismo e dum delito que nem sequer existe no código penal vigente: o delito de ódio contra forças e corpos de segurança do Estado. Assim que a situaçom é que vários funcionários alegadamente especializados investigárom de perto durante vários anos, quando menos, doze pessoas para darem forma a umha acusaçom de terrorismo contra pessoas que, como muito, eram suspeitas de terem cometido delitos de opiniom. No julgamento oral foi posta em relevo a ingente quantidade de recursos humanos e de materiais disponibilizados ao serviço da acusaçom: periciais caligráficas, seguimentos, registos, detençons, traduçom e análise de numerosos documentos etc. Nom faltou, claro, o labor sujo dos mass media, que se encarregárom de fazer de porta-vozes das “cloacas do Estado”, contribuindo para umha estratégia de tensom bastante torpe, mas perigosa, que procurava situar a opiniom pública galega contra as pessoas acusadas.
Nom faltou o labor sujo dos ‘mass media’, que se encarregárom de fazer de porta-vozes dos ‘sumidoiros do Estado’, contribuindo para umha estratégia de tensom que procurava situar a opiniom pública galega contra as pessoas acusadas
Durante todo este tempo, as pessoas acusadas devérom enfrentar acusaçons estrafalárias e medidas cautelares que limitárom sensivelmente as suas liberdades durante o processo
O resultado de todo isso foi a livre absolviçom de cada umha das pessoas acusadas. Mas o dano nom fica reparado polo descrédito que o tribunal, atendendo a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e do Tribunal Supremo espanhol, realiza de cada umha das pretensons da acusaçom. Durante todo este tempo, as pessoas acusadas devérom enfrentar acusaçons estrafalárias – de até 10 anos de prisom –, e medidas cautelares que limitárom sensivelmente as suas liberdades durante o processo. Toda essa presom psicológica fica, se se me permitir a expressom, impune. O cenário vem agravado pola legislaçom sobre custos processuais, que em caso de absolviçom som declaradas de ofício; quer dizer, que cada pessoa acusada se fai cargo das suas, acrescentando um gasto económico mesmo ante casos de absolviçom.
As perguntas que nos devemos fazer agora som óbvias: queremos permitir, como membros de umha sociedade plural, que o poder punitivo do Estado seja exercido sem qualquer fundamento contra determinadas pessoas com base nas suas opçons políticas? Queremos, como contribuintes, financiar custosas investigaçons policiais sustentadas em vagos indícios sobre a comissom de delitos de opiniom? Queremos, como democratas, seguirmos a incluir na nossa lei penal delitos dirigidos a castigar determinadas opinions? Com certeza, a sentença da Operaçom Jaro deveria servir para, quando menos, respondermos, como sociedade, essas perguntas.