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Unha moza sentada dentro de um autocarro.

O autocarro para unir um país

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A dispersão populacional galega apresenta um repto na gestão da mobilidade que o país não foi ainda capaz de enfrentar. A dependência do transporte privado e a escassa implantação dos caminhos de ferro convertem o autocarro numa das únicas vias para gerir, desde o público, o movimento de pessoas pela nossa geografia. Porém, os núcleos pequenos, os eixos geográficos desiguais e o oligopólio de Monbus e Alsa dificultam o sucesso dum Plano de Transporte que, cinco anos depois da sua aprovação, ainda não consegue vertebrar a Galiza. 

Um au­to­carro cruza a es­trada co­mar­cal até a prin­ci­pal lo­ca­li­dade da bis­barra. Viaja atra­vés das pa­ró­quias e re­co­lhe no ca­mi­nho pes­soas ido­sas que aco­dem a uma con­sulta no seu cen­tro de saúde de re­fe­rên­cia, ope­rá­rias que en­tram a tra­ba­lhar, es­tu­dan­tes que as­sis­tem a au­las… Eis a fo­to­gra­fia, di­nâ­mica, das usuá­rias do prin­ci­pal trans­porte pú­blico no ter­ri­tó­rio galego. 

A per­cen­ta­gem de pes­soas sem acesso a trans­porte pri­vado ou com­boio con­densa-se, es­pe­ci­al­mente, em co­le­ti­vos como a mo­ci­dade. Som, em con­sequên­cia, um dos ros­tos mais co­muns nos as­sen­tos deste au­to­carro. Desde a or­ga­ni­za­ção es­tu­dan­til Erguer de­nun­ciam que este grupo vê vul­ne­ra­dos cons­tan­te­mente os seus di­rei­tos na ma­té­ria. “Se o en­sino é um di­reito, de­ve­ria en­tão es­tar ga­ran­tido um ser­viço pú­blico aces­sí­vel de mo­bi­li­dade para co­nec­tar o alu­nado com os seus cen­tros de es­tudo”, afirma Artai Gavilanes, o res­pon­sá­vel da organização. 

Monbus e Alsa con­tam “com mais de 80% das li­nhas pú­bli­cas con­ces­si­o­na­das” e con­ti­nuam a in­cum­prir os seus compromissos

Numa das suas úl­ti­mas cam­pa­nhas, o sin­di­cato es­tu­dan­til des­ta­cava a ne­ces­si­dade do ser­viço e pro­tes­tava pelo fun­ci­o­na­mento de­fi­ci­ente deste. “Para nós é claro que os des­con­tos no trans­porte, tanto no com­boio como no au­to­carro, dei­xa­ram ver os pro­ble­mas: a de­manda está aí, os veí­cu­los vão cheios de es­tu­dan­tes que usam o ser­viço… este trans­porte faz falta”, deixa ver Gavilanes. Porém, o mo­no­pó­lio de em­pre­sas como Alsa ou Monbus, “com mais de 80% das li­nhas pú­bli­cas con­ces­si­o­na­das”, con­ti­nuam a in­cum­prir os seus compromissos. 

Levamos tempo de­nun­ci­ando que não fa­zem as pa­ra­das es­ti­pu­la­das no con­trato, não res­pei­tam os ho­rá­rios… E aí o es­tu­dan­tado fica de­sar­mado”, re­ve­lam desde Erguer. Na or­ga­ni­za­ção fa­zem no­tar tam­bém que ini­ci­a­ti­vas como o car­tão Xente Nova, nas­cido ao abeiro do Plano de Transporte, não abon­dam para co­brir as ne­ces­si­da­des da gente moça. “É uma es­tafa, por­que es­tes des­con­tos de vi­a­gens in­te­rur­ba­nas ape­nas são efe­ti­vos até os 21 anos, idade em que mui­tas não aca­ba­mos ainda o nosso ro­teiro for­ma­tivo, com que o alu­nado fica de novo in­de­fenso…”, lamentam. 

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Ponto de rup­tura 

Ao vo­lante do au­to­carro, o cho­fer guia em si­lên­cio. Se a li­nha ofe­re­cesse trans­porte es­co­lar, po­de­ría­mos ver tam­bém, à sua mão di­reita, uma acom­pa­nhante. O gé­nero é in­ten­ci­o­nado: mais de 90% des­tas tra­ba­lha­do­ras são mu­lhe­res. Fora do qua­dro e da nossa vista, tra­ba­lham tam­bém para es­tas li­nhas pes­soal de ad­mi­nis­tra­ção, lim­peza e aten­di­mento de bal­cão. “Estimamos que os au­to­car­ros ocu­pam apro­xi­ma­da­mente 5000 pes­soas”, in­forma Xesús Pastoriza, de CIG-FGAMT

O grosso deste pes­soal, a miúdo dis­creto e in­vi­sí­vel, er­gueu a voz nos úl­ti­mos me­ses numa mo­vi­men­ta­ção la­bo­ral sem pre­ce­den­tes para o sec­tor. Paros nu­me­ro­sos, ame­a­ças de gre­ves in­de­fi­ni­das e ne­go­ci­a­ções com a pa­tro­nal ainda em curso para tra­tar de ata­lhar uma crise que leva anos a se ges­tar. “Esta é a pior si­tu­a­ção que lem­bro em 30 anos que levo tra­ba­lhando, não sei de nada se­me­lhante”, ex­plica Pastoriza. 

Entre as ho­ras de vi­a­gem, as es­pe­ras e os des­can­sos, um con­du­tor pode pre­ci­sar en­tre 14 e 15 ho­ras para com­ple­tar a sua jor­nada laboral

A causa por trás das mo­bi­li­za­ções é múl­ti­pla. Por um lado está a atu­a­li­za­ção dos con­vê­nios pro­vin­ci­ais, que fi­na­li­zou em 2017 no caso de Lugo e em 2020 no resto de pro­vín­cias. “A ati­tude que vi­mos por parte da pa­tro­nal é a da pas­si­vi­dade: pre­ten­diam dei­xar pas­sar o tempo para de­va­luar as con­di­ções eco­nó­mi­cas do pes­soal”, si­nala o sin­di­ca­lista da CIG. Esta es­tra­té­gia, aponta, está li­gada ao ca­rá­ter “de­fi­ci­tá­rio” dos con­tra­tos pú­bli­cos ad­ju­di­ca­dos desde a Junta. A ca­rên­cia, co­menta, pre­ten­dia ser pa­li­ada “a conta das tra­ba­lha­do­ras e trabalhadores”. 

A jo­gada, po­rém, não fun­ci­o­nou. O ver­ti­gi­noso au­mento da in­fla­ção pro­vo­cou um au­mento do IPC que aca­bou por de­ci­dir o sec­tor. “Este é um sec­tor di­fí­cil de mo­bi­li­zar, mas agora mesmo a si­tu­a­ção era ina­cei­tá­vel”, relata. 

Além da atu­a­li­za­ção de con­vê­nios e tá­buas sa­la­ri­ais, que de­vem re­cu­pe­rar o equi­va­lente a 12,2% pelo au­mento do IPC, as tra­ba­lha­do­ras reu­niam mais mo­ti­vos para a greve. “Outros dos pon­tos que ainda de­ve­mos acor­dar na mesa são: a or­ga­ni­za­ção da jor­nada, por­que que­re­mos es­ta­be­le­cer um tope má­ximo de 12 ho­ras na jor­nada; a im­plan­ta­ção de qua­dran­tes se­ma­nais e o di­reito a co­mer”, re­clama Pastoriza. 

De volta com o con­du­tor do nosso au­to­carro, po­de­mos en­tão ima­gi­nar que hoje a sua jor­nada co­me­çou com o pri­meiro tra­jeto às 6 da ma­nhã e pode não fi­na­li­zar até a 1 da ma­dru­gada. “Conduzes, tens des­can­sos… Fazes a jor­nada de 8 ho­ras, mas po­des es­tar 14 ou 15 para fazê-la”, ma­ni­fes­tam desde o sin­di­cato. A isto so­ma­mos a im­pos­si­bi­li­dade de con­ci­liar do nosso con­du­tor sem uma pla­ni­fi­ca­ção para guiar-se. “Em Ourense e Lugo, não sa­bem até a noite an­te­rior a que hora sai­rão no dia a se­guir… o qua­drante per­mi­ti­ria po­der or­ga­ni­zar-se face à se­guinte se­mana”, explicam. 

“O pes­soal acom­pa­nhante no trans­porte es­co­lar, de per­fil mai­o­ri­ta­ri­a­mente fe­mi­nino, exige jor­na­das mí­ni­mas de 2 ho­ras e o re­co­nhe­ci­mento de todo o tempo que pas­sam a dis­por da empresa

Sem sa­ber o seu ho­rá­rio, com jor­na­das in­ter­mi­ná­veis e sem des­can­sos re­gu­la­men­ta­dos para co­mer, “que são ques­tões bá­si­cas, di­rei­tos hu­ma­nos”, os tra­ba­lha­do­res acu­sam um alto ra­tio de bai­xas por saúde men­tal. “O pes­soal não pode mais”, alertam. 

Em pa­ra­lelo, o pes­soal acom­pa­nhante do trans­porte es­co­lar pos­sui as suas pró­prias de­man­das. São um per­fil mai­o­ri­ta­ri­a­mente fe­mi­nino, com jor­na­das par­ci­ais e con­di­ções mui pre­cá­rias que im­pos­si­bi­li­tam a miúdo a con­ci­li­a­ção fa­mi­liar. Exigem jor­na­das mí­ni­mas de duas ho­ras, que res­pei­tem as ho­ras re­al­mente tra­ba­lha­das. “Queremos que com­pu­tem todo o tempo que pas­sam a dis­po­si­ção da em­presa, e não só quando sobe e baixa a ra­pa­zi­ada, por­que já vi­mos con­tra­tos de meia hora, 45 mi­nu­tos…”, cri­tica Pastoriza. 

Uma con­versa em curso 

Neste con­texto, a mo­vi­men­ta­ção sin­di­cal não tar­dou. CIG, UGT e CCOO con­vo­ca­ram um paro no sec­tor o 31 de março, que con­tou com um se­gui­mento ma­ciço. Manifestaram-se o 25 de abril di­ante do Parlamento ga­lego e, fi­nal­mente, após nu­me­ro­sas reu­niões, des­con­vo­ca­ram dous dias de paro no fim de abril. As ne­go­ci­a­ções fi­ca­ram blo­que­a­das após uma pro­posta de mí­ni­mos da pa­tro­nal, que no iní­cio se ne­gara a su­bir mais do 0,8% do sa­lá­rio. Porém, ape­nas 24 ho­ras an­tes da greve in­de­fi­nida que prin­ci­pi­ava o 8 de março, am­bas as duas par­tes che­ga­ram a um pré-acordo para efe­tuar me­lho­ras sa­la­ri­ais este mesmo ano. 

“O acordo eco­nó­mico com a pa­tro­nal não é sa­tis­fa­tó­rio, mas polo me­nos é umha me­lhora em que, sem ainda ga­nhar nada, re­cu­pe­ra­mos o ter­reno per­dido”, in­di­cam desde a CIG

Este acordo eco­nó­mico, sem ser sa­tis­fa­tó­rio, pelo me­nos é uma me­lhora com a qual, sem ainda ga­nhar nada, re­cu­pe­ra­mos o ter­reno per­dido no eido sa­la­rial”, in­di­cam desde a CIG. Fica se­gu­rado, pois, o au­mento de 12,2% dos sa­lá­rios (mais 2% em Lugo, com um con­vê­nio mais an­tigo), e a ne­ces­si­dade de con­ti­nuar com a mesa aberta para ne­go­ciar as ou­tras questões. 

Se nos pró­xi­mos me­ses ou se­ma­nas a mesa não dá algo mais, não des­car­ta­mos que possa ha­ver mais mo­bi­li­za­ções de­pois do ve­rão… Isto vol­tará es­tou­rar em cer­tos me­ses, por­que se­gue ha­vendo ten­são no sec­tor e, sem um acordo claro, só es­ta­mos a adiar a so­lu­ção”, co­menta Xesús Pastoriza. 

Neste ce­ná­rio, desde os sin­di­ca­tos fa­zem no­tar que a Junta “faz que não vê”. Do mesmo jeito que ig­nora a sua po­tes­tade para pro­tes­tar pela se­gu­ri­dade dos au­to­car­ros (com uma mé­dia de idade muito por riba do pre­visto na lei), adota um pa­pel pas­sivo à hora de ge­rir este con­flito em evo­lu­ção. “Vemos que fun­ci­ona uni­ca­mente a ní­vel me­diá­tico, pu­blica co­mu­ni­ca­dos di­zendo men­ti­ras en­quanto nem se­quer nos re­cebe… se­me­lha sim­ples­mente ali­vi­ada por evi­tar a greve em pe­ríodo de cam­pa­nha elei­to­ral”, acusa o sin­di­ca­lista da CIG

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Uma UTE em fraude de lei 

Em pa­ra­lelo ao con­flito, o Tribunal Superior de Xustiza da Galiza di­tou sen­tença no fim de março, obri­gando a Comisión Galega da Competência (CGC) a abrir um ex­pe­di­ente san­ci­o­na­dor para in­ves­ti­gar a su­posta re­par­ti­ção de mer­cado en­tre Alsa e Monbus, prin­ci­pais em­pre­sas de au­to­car­ros na Galiza. A sus­peita é que con­cor­re­ram em UTE (União Temporal de Empresas) para po­der op­tar aos mai­o­res lo­tes de con­tra­tos pú­bli­cos da co­mu­ni­dade. Este di­nheiro está in­te­grado por 127 mi­lhões de eu­ros que move o Plano de Transporte ga­lego em ma­té­ria de au­to­car­ros, re­par­ti­dos en­tre Mobilidade, Ensino e o car­tão Xente Nova, para além das ache­gas de or­ça­men­tos estatais. 

As duas prin­ci­pais li­nhas são Ferrol-Vigo e a área me­tro­po­li­tana da Corunha; a pri­meira tem‑a Monbus e a ou­tra Alsa as­sim, na UTE da pri­meira Monbus pos­sui 96% e na se­gunda é à in­versa, o jul­gado viu-no mui claro!”, clama Pastoriza. Na sen­tença do TSXG, o jul­gado ob­serva que as duas com­pa­nhias “não con­cor­re­ram em UTE por­que o pre­ci­sas­sem, já que têm meios para con­cor­re­rem in­di­vi­du­al­mente, como fi­ze­ram nas cem con­ces­sões da pri­meira fase do Plano de Transporte”. 

À es­pera de que Monbus re­corra a sen­tença ju­di­cial, o au­to­carro se­gue o seu tra­jeto. Novas vi­a­gei­ras so­bem. Alguma pes­soa leva-lhe as quei­xas ao con­du­tor pela de­mora no ser­viço. É um au­to­carro ve­lho, não é a pri­meira vez que fi­cam ti­ra­das numa va­leta. Fora do qua­dro, fa­ze­mos zoom out. Ampliamos a vi­são, por fora do pes­soal de ad­mi­nis­tra­ção ou de bal­cão, por fora dos cho­fe­res e das acom­pa­nhan­tes can­sa­das ao sair da sua jor­nada. Giramos a câ­mara até os es­cri­tó­rios das com­pa­nhias que en­fren­tam acu­sa­ções de re­par­tir o mer­cado. Giramos a vista, de novo, até a di­re­ção da CGC (de­sig­nada di­re­ta­mente pelo exe­cu­tivo), que ar­qui­vou a de­nún­cia ini­cial dos sin­di­ca­tos sem se­quer in­ves­tigá-la. Vemos agora, tam­bém, as ofi­ci­nas de Mobilidade, onde o di­re­tor es­pera pe­las di­li­gên­cias do pe­nal por um pos­sí­vel de­lito de prevaricação. 

Eis, ou­tra sequên­cia, ou­tro filme, a ori­gem do problema. 

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