
O ano da pandemia está a mostrar que a saúde pública está a ser desmantelada, daquele “exemplo” para o mundo “restam apenas os profissionais”.
O número de mortos é estarrecedor. Em lares de idosos, a Covid causou umha hecatombe. Nos hospitais, outra carnificina. Os centros de saúde erguêrom a barreira do atendimento telefónico e o pessoal de saúde está exausto, muito irritado e parece estar a baixar os braços na luta por um serviço público decente. “Daquela exemplar saúde pública que tinha sido considerada umha das melhores do mundo quando comecei a trabalhar há 27 anos, primeiro no Hospital Geral de Santiago de Compostela e depois na UTI do Clínico, resta é apenas o quadro de funcionários”, refletia Rosa Gonzalez, enfermeira, em meados de novembro passado, prestes a iniciar umha greve, que nom ia funcionar, como medida de pressom. Ela e as suas 37 colegas de serviço som com todo o pessoal disponível e necessário para manter o último bote salva-vidas operacional.
“Os serviços mínimos somos todas”, di Rosa, resignada, ao anunciar que farám o máximo que puderem na sua reivindicaçom porque nom abandonarám os doentes. Resignada a assumir a responsabilidade a que os gerentes fogem. O mesmo ocorre com a saúde pós-covid: restam apenas os profissionais.
Os centros de saúde erguêrom a barreira do atendimento telefónico e o pessoal de saúde está exausto, muito irritado e parece estar a baixar os braços na luta por um serviço público decente
“Os serviços mínimos somos todas” é umha descriçom precisa do ponto a que as cousas chegárom após anos de demoliçom planificada daquela saúde pública através de cortes e precarizaçom do trabalho, degradaçom da qualidade assistencial e privatizaçons.
A importância do sistema social
Alguns dias antes, no início de novembro, os médicos de família também levantaram a voz. “Ditar regras e dar conselhos nom é suficiente para mudar o comportamento das pessoas. Para tal, é imprescindível conhecer e compreender os contextos de populaçons e territórios que determinam as suas condiçons de vida e comportamentos ”, alertava um manifesto estatal apoiado na Galiza pola Associaçom Galega de Medicina de Família e Comunitária (Agamfec).
Mas nom tínhamos dito que o vírus nom conhecia fronteiras?
- A teoria é essa. Na prática, a situaçom social das pessoas afetadas irá determinar que o consigam combater de umha ou de outra forma. Num duplex de 180 metros, se utilizares um apartamento para isolares umha pessoa infetada, a probabilidade de infeçom do resto da família é menor, ou se puderes ir de carro ou a pé ao trabalho e evitar o transporte público, o risco também diminui. À medida que desceres na escada social, o risco aumenta. Nos lares, onde a transmissom foi bestial, nos centros mais precários em termos de ventilaçom e com piores relaçons de auxiliares por interno, as diferenças também som percebidas ‑responde Jesús Sueiro, porta-voz da associaçom e médico da escola primária de um posto de saúde no Ensanche de Compostela.

“Nom é umha suspeita. O contexto social é decisivo. Consegue-se ver nos mapas publicados em todo o Estado. Em Madrid, por exemplo, tentárom confinar apenas os bairros mais humildes, porque nos ricos a incidência era menor. Para que umha pandemia ocorra, nom só é necessário um vírus, mas também condiçons de transmissom. Acontecia com a sida ou com a tuberculose, que nom afetava do mesmo jeito a toda a populaçom. Nom foi apenas com a vacina que a tuberculose foi controlada. Sempre há algo mais, foi por isso que lançámos o manifesto.
O manifesto é um desafio para a estratégia das autoridades de saúde na hora de combater a pandemia.
Apela para o reforço da atençom dos “grupos mais vulneráveis”, para “reconhecer” o papel das redes comunitárias em cada território para que participem na “conceçom” e “implementaçom” das medidas, para evitar a “estigmatizaçom” que culpa o “Outro”, para «inverter a tendência hospital-centrista na alocaçom de orçamentos e aumentar o investimento finalista destinado à Atençom Primária ”.
“Ditar regras nom é suficiente para mudar os comportamentos. É imprescindível conhecer os contextos de populaçons e territórios que determinam as suas condiçons de vida e comportamentos”
O convite é para mudar o paradigma. Os gerentes de saúde pública avaliárom mal a pandemia porque a demoliçom que eles causárom acabou por arrastar todos. Na comunidade de profissionais o debate tinha girado em torno de: hospitalocentrismo versus atençom primária.
As enfermeiras mobilizam-se
A luta da Rosa e as colegas tem por objetivo reforçar o quadro de funcionários das UCI e por “melhorar a qualidade assistencial e a segurança das trabalhadoras” através da reforma de umha unidade que nom foi reformada nos últimos vinte anos. Na UCI limpa e na da destinada à Covid trabalham 38 enfermeiras. Quinze camas e mais quinze camas. O trabalho duplicou até porque o quadro de funcionários nom variou. No final de outubro, os dias de folga e feriados fôrom suspensos. Algumhas levavam mais de um ano a trabalhar sem parar.
“Os gerentes dim que nom há pessoal nas listas de contrataçom. Parece-nos normal … durante anos, nesta área da saúde, muitas das colegas que provinham das listas eram sistematicamente maltratadas: contratos por dias, salários muito baixos. Em outubro abrírom a UCI da covid sem pessoal por falta de previsom, nom havia pessoal formado por culpa de umha má gestom. Ou nom sabíamos todas que a segunda onda da pandemia estava mesmo a chegar? ”
As enfermeiras de serviço começárom a negociar com os gerentes de hospitais em maio, assim que a primeira onda abrandou. Tivérom reunions e os gerentes prometérom contratar mais enfermeiras, mas nom mudárom de atitude: deixando as cousas sem amanhar, movendo pessoal de Conxo, trocando com outros serviços.
“No mesmo dia saías da limpa e entravas na outra. O material era o que tínhamos em abril, roupas lavadas e relavadas, deterioradas, elásticos dos óculos desgastados, sem máscaras FFP2 quando estavas na UCI limpa e podias ter de estar a tratar casos assintomáticos. O acordo nom se cumpre: umha enfermeira para cada dois pacientes, e na UCI covid, três para cada dois”.
“Todo palavras vazias… ”

O pessoal está física e psicologicamente exausto, dececionado. “É horrível, os traumas estám aí, essas vivências … e ao invés de nos sentirmos protegidos polos supervisores, estamos a ser machucadas, recebemos é ainda mais carga de trabalho. Tentámos aguentar. Durante a primeira onda, nom protestámos. Em maio começámos a lutar por umha UCI decente. Reunimos, combinámos um acordo e fôrom eles que nom cumprírom».
16 de novembro entrárom em greve. Cem por cento era o pessoal mínimo para os serviços mínimos. O direito de greve, adiado, como as férias. Mas o mais preocupante é que umha parte importante da saúde pública galega se mantém em situaçom de serviços mínimos.
“Agora precisamos desburocratizar, porque passámos horas a fazer procedimentos de alta, relatórios … esse trabalho é o que consome o nosso tempo e que podíamos mesmo dedicar a pacientes reais. Temos de tirar tudo isso daí: fortalecer as áreas administrativas. Estamos a trabalhar em propostas nesse sentido ”, destaca Jesús Sueiro, médico da Atençom Primária, e acrescenta: “É verdade que nom há médicos nas listas, mas poderia-se contratar mais pessoal de enfermagem e dedicá-lo a umha atençom proativa, trabalho comunitário, poder chamar os pacientes e estar pendentes deles. Para atender às suas necessidades, não apenas às suas demandas ”.
“Na primeira onda, nom protestámos. Em maio começámos a lutar por umha UCI decente. Atingimos um acordo e fôrom eles que nom cumprírom”
Por que nom antes, se cada dia que passa é mais tarde?
Novembro pode parecer tarde. Esse discurso era comum antes entre os médicos da Atençom Primária, mas manifestava-se internamente. Agora, desenvolvido um pouco mais através de instrumentos como o Observatório de Saúde Comunitária, é que saiu à luz ‑responde Sueiro-.
“Os centros de saúde som o elemento central do sistema de saúde para a prevençom e mitigaçom da covid. Além de ser a base da deteçom precoce de casos, a Atençom Primária é a porta de entrada para o envolvimento da comunidade. A atençom comunitária desde o posto de saúde implica gerar um diálogo para aumentar a responsabilidade social e a resiliência da comunidade”, garante o manifesto.
Choque de mentalidades
No meio da crise, o transatlântico do sistema parece estar a afundir e existe pouca margem para endireitar o rumo.
Os médicos saltam das questons práticas para as teóricas. Ninguém sabe muito bem como lidar com o problema. “Temos tendência a ter umha visom assaz biologicista. É a visom das autoridades. No hospital entras para te tratarem de umha doença, ponto final; nom irám avaliar a tua situaçom social nem outras condiçons. Todo o controlo da pandemia parece centrado em evitar a saturaçom das UCI”, insiste Sueiro.
Os médicos, garante, tenhem umha visom “mais psicossocial” e enfrentam o problema com umha “abordagem biopsicossocial”.
A mentalidade das autoridades mostrou «estar coxa», os médicos de família «lidamos com todos os estratos sociais e é por isso que lançámos este alerta».
Enquanto Rosa e as enfermeiras da UTI do hospital assumem a sua responsabilidade com a comunidade: “com o que está a passar, nom se entenderia que deixássemos de atender por causa de reclamaçons profissionais, que som justas e beneficiam os pacientes”; os médicos do centro dim que a primeira cousa a fazer é ouvir as pessoas, “os líderes sociais dos bairros” para acertar as medidas e passá-las para toda a comunidade.
Política institucional falhada, os profissionais voltam o olhar para as pessoas.
“Com a repressom nom se resolve. Temos de buscar cumplicidades. Para respeitar um processo é preciso compreendê-lo e participar dele”, resume Sueiro.