“…outros muitos que eu conheço, Gay, e que tu conheces também, pintores e poetas, que nom fam mais do que pregoar a sua amargura polas nossas aldeias. A nossa terra come os homens, dissolve-os no orvalho, tira-lhes a vontade. Ao que fica choem-se-lhe os caminhos todos, nom sendo o a mediocridade e a bebedela. Tens que vir pra Madrid, Carlos. Isto é outra cousa. O ar frio espevita.”
Torrente Ballester, Los Gozos y las sombras
Sendo ainda um adolescente, Manuel Murguia assistira aos derradeiros estertores da Revoluçom de Abril, ouvindo os tiroteios que cercavam os de Solís nas ruas de Compostela. O episódio marcou-no e decidiu a grande escolha da sua vida. Apenas umha década depois, com vinte e quatro anos, abria o seu espaço na vida pública da boémia e da intelectualidade liberal. Esmorecera o projeto de Faraldo e Neira de Mosquera, e se qualquer vontade galeguista se exprimia, era em segundo plano.
Este moço de Arteixo ‑boticário que enredava para o ofício das letras- dava os primeiros passos na que consideraria missom sagrada: o serviço à Galiza. E nas páginas de La Oliva perguntava-se em voz alta polas causas da nossa postraçom: assombrava-se Murguia da perdurável indiferença das elites a respeito dos destinos da terra, num ciclo historicamente repetido de derrota e desleixo. Menta as novas geraçons finadas prematuramente (em alusom aos rebeldes de 46, executados ou forçados ao exílio) e adica duras palavras aos alheeiros e arrivistas desejosos de “florescer em chãos estranhos”. O país precisa dum guieiro que, no papel de poeta, enaltece as glórias esquecidas e o património popular. Quem será esta figura? Pois nom é doado, razoa Murguia, enfrentar-se “a irmãos que lhe fogem e o cobrem de ignomínia”. Tarefa obrigada, porém, será a de se enfrentar à “triste maldiçom” que tolhe o que fora Antigo Reino. Com tal precocidade e lucidez alviscou Murguia a longa rota que ele e outros vultos galeguistas teriam que iniciar.
Teima e inconstância
Por palavras de X. R. Barreiro, Manuel Murguia foi um raro caso de personalidade monotemática; um testám incorrigível obcecado pola dignificaçom da Galiza. Tracejou umha estratégia e, numa explicitada distribuiçom de funçons, estruturou um pequeno movimento, mais ou menos formal, acompanhado dos seus incondicionais.
Cuidou enormemente da vida familiar e a promoçom de toda a sua caste, mas a privacidade e o envolvimento nos assuntos galegos entrecruzam-se de tal maneira que é difícil discerni-los: os seus destinos laborais estivérom sempre condicionados politicamente, e as angueiras culturais que partilha com Rosalia incidírom na intimidade de ambos.
Primeiro por intuiçom, posteriormente por indagaçom científica, soubo do peso determinante que tivo na nossa história a assimilaçom das elites no projeto castelám-espanhol.
Primeiro por intuiçom, posteriormente por indagaçom científica, soubo do peso determinante que tivo na nossa história a assimilaçom das elites no projeto castelám-espanhol. E por experiência direta, amargamente vivida, conheceu os fracos alicerces do coletivo de notáveis chamados a constituir o galeguismo na segunda metade do século XIX. A pretensom de liderar umha mesocracia indígena culturalmente soberana e vindicativa com Madrid resultou para Murguia bem longe de poder ser consumada. O nosso homem tratou (e as honrosas excepçons nom invalidam o quadro geral) com umha intelectualidade tatejante, apavorada pola magnitude da tarefa, e que muito frequentemente restringiu o galeguismo a umha febril dedicaçom juvenil, antes de desembarcar nos espaços da oficialidade política espanhola.
Da promoçom rebelde nascida ao alento da boémia estudantil dos 50, ele foi o único a permanecer fiel ao País de maneira intransigente; companheiros regionalistas com um peso específico, como Amor Meilám ou Aureliano Pereira, abandonarám-no três décadas depois, seduzidos polo liberal-fusionismo; outros que batalharam com ele na causa galega, como González Besada ou Seoane Varela, tomarám também outros rumos, rematando de deputados da Restauraçom.
Murguia tinha presente este fenómeno antes mesmo de se consumarem tantas baixas. Escrevera‑o no limar d’Os Precursores: “servimos outros altares, nom queremos por filhos os que desertam das bandeiras a cuja sombra combatêrom os seus pais”. E as proclamas que populariza na última jeira da sua vida, pulando por umha redençom galega liderada polas massas campesinas, cumpre enquadrá-las no distanciamento a respeito dos seus iguais. Tratava-se de umha esperançosa apelaçom ao povo galego do futuro, tam bem plasmada por Rosalia no prólogo dos Cantares: “As multidons dos nossos campos tardarám a ler estes versos, escritos por causa deles”.
É admirável que o plano nacionalizador de Murguia fosse subindo chanços num panorama tam precário; e que afiançasse elementos da nossa simbologia e identidade que continuam vigorantes na Galiza de hoje. Como toda a mocidade romântica, enceta a sua carreira no cultivo dos versos, e pensa inclusive numha incursom na prosa: sente-se atraído pola possibilidade dum romance histórico à galega, no ronsel de Walter Scott. Porém, o país precisava da abertura de frentes, e ele só podia ocupar umhas delas. Antes de qualquer novela, devia desenvolver-se o discurso científico que a justificasse, seguindo as pautas da história ‘ad probandum’ que circula pola Europa. Para complementar o prestígio e a firmeza que havia ganhar a historiografia galega, cumpria a promoçom da poesia autóctone, épica e costumista. Assim o explicita na sua correspondência com Eduardo Pondal: “somos como dous irmãos que se têm repartido gostosos a tarefa: ti a cantares em versos imortais as gentes e os lugares que amamos, eu a recitar com singeleza (…) as esquecidas façanhas dos nossos antergos”.
Previamente à sua aposta no regionalismo político, esta é a focagem dum Murguia consagrado à redaçom dos primeiros tomos da sua História. Ainda circunscrito ao âmbito da cultura, afronta um trabalho inçado de obstáculos. A redescoberta do Reino Suevo vale-lhe acusaçons de deslealdade nacional por parte do ‘establishment’ académico espanhol; Manuel Colmeiro, professor compostelano, na altura reconhecido como um dos grandes teóricos do unitarismo, pede que se lhe retire qualquer bolsa estatal.
Ainda circunscrito ao âmbito da cultura, afronta um trabalho inçado de obstáculos. A redescoberta do Reino Suevo vale-lhe acusaçons de deslealdade nacional por parte do 'establishment' académico espanhol
Nom todo era hostilidade ou deserçom. Abundava o desleixo, que constituía umha outra dificuldade somada à longa lista. Quando impele as classes cultas a acometer umha sistematizaçom exaustiva da cultura popular, por entom viçosa na nossa terra, só recebe o silêncio como resposta. Na sua habitual linha de açom, enfrenta em solitário este labor.
Tampouco o grosso da intelectualidade nativa se via comprometida por esta pequena responsabilidade, apesar do auge dos estudos folclóricos naquela Europa, onde conservadores e progressistas podiam unir-se temporariamente à volta dumha homenagem asséptica ao pitoresco. É difícil transmitir com maior clareza que Emilia Pardo Bazán a querença real da pequena burguesia e fidalguia urbanas polas cousas da Galiza. Em carta a Antonio Machado (pai) sobre a sua possível presidência da ‘Sociedad del Fol-klore’, escreve a condessa: “nom entendo palavra de cousas do meu país e um trabalho de Folclore feito por mim deitaria de certo a pique a minha pequena honra literária. Nom sei nada disto regional”.
Utilitarismo e adaptaçom
Ficaríamos numha visom reducionista se retratássemos Murguia como um inadaptado em briga permanente com a intelectualidade e a política do seu tempo. Amossou um grande tacticismo e ganhou reconhecimento dos poderes fácticos galego-espanhóis como sábio de referência, o patriarca das nossas letras. Disto decorreu um grande sucesso cultural e umha notória indigência organizativa e partidária.
Amossou um grande tacticismo e ganhou reconhecimento dos poderes fácticos galego-espanhóis como sábio de referência, o patriarca das nossas letras.
Se repassarmos a nómina dos seus valedores (incondicionais ou esporádicos) decataremo-nos da presença dumha mesta rede: Álvarez Ínsua ou Curros Henríquez desde a emigraçom havaneira; o carlista Soto Freire no mundo editorial; o deputado padronês Ramón Tojo (numerário da RAG) ou o ministro canovista Aureliano Linares Rivas.
Desde umha inquestionada superioridade intelectual, e taticamente apoiados em figuras do poder, os galeguistas acadárom a hegemonia na produçom de símbolos para a nossa Terra: galeguista era nas origens o emblema que virou bandeira nacional; galeguista é o hino, como galeguista é a nossa primeira instituiçom dos tempos modernos, a RAG.
Claro que tais feitos fôrom tremendamente ambivalentes. Se se conquistárom, foi em troca do pagamento de portagens. Os representantes de Espanha só aceitariam certos progressos galeguizadores se o movimento que os nutria ficasse na monocultura erudita. Sabedor dos sérios custos pessoais que envolveria devotar-se a umha articulaçom política autóctone, Murguia abandona a luita partidária. Finda a experiência regionalista sentindo-se só, sabendo-se sem jeito para questons organizativas, e aproveita para alcançar a máxima categoria da sua profissom (1º grau do Corpo de Arquivistas, Bibliotecários e Antiquários). Neste pequeno espaço de acougo que a Restauraçom lhe permite, Murguia procura lançar a Real Academia; e como o espanholismo sempre anda à espreita, tem de enfrentar umha campanha opositora dos mais importantes cabeçalhos do país. Salva o cerco incluindo na instituiçom um bom feixe de notáveis desapegados do pais e do idioma. Sob tais condicionamentos, orbitando arredor dum espaço de classe e político substancialmente antigalego, certas ideias força de Murguia aparecerám secundarizadas até hoje. “Galiza já foi rainha antes que nenhuma outra e ainda nom prescreveu o nosso direito”, escreve o de Arteixo a propósito do Reino. Este seu discurso foi censurado e, em termos gerais, qualquer mençom à soberania galega de tempos medievais percebia-se molesta e impertinente. Também a sua intervençom nos Jogos Florais de Tui, todo um manifesto reintegracionista, passa a criar pó nos arquivos para consulta de especialistas.
a sua intervençom nos Jogos Florais de Tui, todo um manifesto reintegracionista, passa a criar pó nos arquivos para consulta de especialistas.
O regionalismo viveu incomodado entre dous fogos, umha situaçom que caracterizará todo o galeguismo nom independentista posterior, e que chega ao presente. Por umha banda, era considerado um ideário subversivo que cumpria vigiar muito de perto, coutando com firmeza as suas possíveis derivaçons e submetendo os seus desenvolvimentos teóricos a censura. Muito tino, adverte Paz Novoa, “pois no regionalismo latejam os germes do arredismo”. E Pardo Bazán diz que o separatismo nom é umha outra cousa que “a forma aguda do regionalismo lírico”.
A seguir vinham sempre as desculpas, os desmentidos, a pública contriçom e (soa-nos a história) a rebaixa dos próprios postulados para obter a benevolência do poder. Como prémio, chegava a condescendência. O regionalismo era “rebeliom e conspiraçom em Polónia”, “autonomismo e desassossego na Irlanda”, “separatismo em Cuba”, “egoísmo regional e manufatureiro em Catalunha”, “fuerismo belicoso nas províncias bascas”; na Galiza, apenas “morrinha e queixumes”. Isso escreve Leopoldo Pedreira, um dos adversários de Murguia, em 1894. A ambiguidade sempre se paga com desprezo.
Um elo da longa cadeia
Por muito excecionais que fossem as aptidons de Murguia, e por inesgotável que resultasse a sua capacidade de trabalho, nenhuma mente sensata poderia pensar que lhe cabia a ele resolver a questom galega, e fazê-lo milagreiramente nos seus alvores. Acaem-lhe perfeitamente as palavras que Porteiro Garea empregou para definir as primeiras promoçons nacionalistas: “somos os enciclopedistas da causa da liberdade galega no seu período pré-revolucionário”. Como os ilustrados, Murguia introduziu num monumento de erudiçom ideias de enorme potencial subversivo; e como eles, teceu umha realaçom confusa com o poder esperando trabalhar tranquilo e ir filtrando nas classes cultas teses rupturistas.
O carácter nom é um assunto menor. Tem-se dito que Murguia viveu imbuído dum talante “messiânico”, e nom é um exagero. Esqueçamo-nos do sentido pejorativo que costuma dar-se ao termo, e mesmo da sua literalidade religiosa. Murguia foi um homem de fé política. Trabalhou na longa espera, na paciência infinita, alumiado pola crença que Walter Benjamin plasmou: o melhor do passado pode restaurar-se num momento imprevisto e propício, como num relampo.
Como os ilustrados, Murguia introduziu num monumento de erudiçom ideias de enorme potencial subversivo; e como eles, teceu umha realaçom confusa com o poder esperando trabalhar tranquilo e ir filtrando nas classes cultas teses rupturistas
Esta conviçom blindou-no, deu-lhe fôlegos, permitiu-lhe nom ser consumido por intelectuais saudosos e indolentes, fidalguinhos que, como o personagem de Torrente Ballester, descriam de si mesmos e queriam fazer-nos pensar que toda a culpa era da Galiza. Dos verdadeiros galeguistas cumpre dizer, com Otero, que “figérom de todo, porque todo estava por fazer”. Nesta grande reconstruçom, ainda inacabada, Murguia abriu um caminho que inspirará por longo tempo.
Artigo escrito na prisom de Dueñas, 28–2‑2016.
Bibliografia:
- A Nosa Terra, nº 130–31, Crunha, 5-11-1920
- Barreiro Fernández, X.R.: Murguia. Galaxia, Vigo, 2012
- Pardo Bazán, E. : Folklore gallego. Un saber popular con sabor celta. Bibliomanías, Donosti, 2000.
- Pedreira, L.: El regionalismo en Galicia (estudio crítico). Madrid, La Linterna, 1894.
- Torna, C.: ‘De Ortegal ao Miño’, in Especial Ben-cho-sey,. O triunfo do ideal. Sermos Galiza, Compostela, Fevereiro de 2013.
- Vázquez Souza, E.: ‘Um texto programático: Manuel Murguia e a Nova literatura da Nação. Notas sobre o Discurso Preliminar do Diccionario de Escritores Gallegos (1862)’, in Galiza. Língua e sociedade. Academia Galega da Língua Portuguesa, Compostela, 2009.