As comarcas do Eume, Ortegal e Ferrolterra levam anos a esvaziarem-se perante a ausência de alternativas sustentáveis e o declive dumha indústria cada vez mais efémera.
Umha vez, ponhamos que há muito tempo, umha mestra saiu caminhar com um aprendiz durante um ano. Ao passar numha aldeia, um dos primeiros dias, a mestra parou em frente dumha casa. A casinha estava em meio dumha leira gigante e era a única onde havia umha vaca. Estava muito magra e tinha uns tetos tam cheios que quase tocavam na erva. A mestra pousou o seu saco e foi com a vaca. Sem dizer nada, sacou do peto um cuitelo, acarinhou a vaca, cortou-lhe o pescoço e volveu. O seu companheiro de viagem nom entendeu, tampouco perguntou. E seguírom a viagem como se nada tivesse passado.
Algo assim tem sido o conto popular da vaca fraca, que nem acontece em Ferrolterra nem tem nada a ver com a comarca, além do sentimento da dona da vaca ao ver que o seu sustento morreu como morrem todas as propostas de futuro feitas na zona.
Desemprego e despovoamento
Fernando Iglesias é de Cedeira, tem 53 anos e nom é umha personagem de nenhuma história. Começou a trabalhar na pesca costeira nos anos 80: “Acompanhava o meu pai ao mar, depois fum para o Grande Sol, e nom me lembro de umha situaçom como esta na comarca. Também estive nos estaleiros e passei anos a trabalhar nas cabines de pintura da Gamesa. Demitírom-me em março”. Fernando está a falar do ERE da Siemens-Gamesa nas Somozas que deixou centenas na rua, o que também se passou com a Galicia Textil em Neda, exemplos com menos sona do que o caso da térmicas das Ponte ou da Alcoa, encerradas, ou da pouca carga de trabalho da Navantia.
Som dezenas de milhares de pessoas que, como Fernando, perdêrom o emprego e nom tenhem respostas além das promessas de curto prazo: “No final, acabas por ver tudo cair e por te perguntar: o que fago agora? Acabas deprimido”.
Iolanda Teixeiro é umha ativista decrescentista e professora de ioga em Ferrol, a urbe coa taxa de desemprego mais alta do país: “A cidade ainda está traumatizada, aqui foi caindo todo e o estado nunca ajudou nem compensou em nada”. Iago Pérez tem 26 anos, também é decrescentista e partilha esta crítica: “Ferrol sempre viveu ao capricho do estado, seja com os estaleiros ou com a Marina, e desde que isso foi a menos a gente nova escapa”. Desde o ano 2010, a comarca de Ferrol perdeu mais de 11.182 pessoas e a do Eume, 2.496. A de Ortegal perdeu o 45% da sua populaçom desde 1981.
Desde o ano 2010, a comarca de Ferrol perdeu mais de 11.182 pessoas e a do Eume, 2.496. A de Ortegal perdeu o 45% da sua populaçom desde 1981
O despovoamento do rural e o desmantelamento produtivo industrial explica a magnitude dos dados. A precariedade é outra das causas, também no mar. Fernando Iglesias explica que já nom há pesca: “Antes a baixura dava para muita gente, mas já nom se pesca porque nom é rentável. E na altura, os colegas dizem que é insuportável; umha tortura mesmo. Os novos patrons obrigam a trabalhar todos os dias, dormindo quatro horas”. Iago tem a perspetiva da seguinte geraçom, aquela que foi considerada ser a mais preparada da história: “Na crise de 2008 diziam-nos para irmo-nos para Madrid ou para a Europa. Muita gente saiu, mas isso nom é mais viável porque o aluguer é muito caro e a competiçom entre todos é acirrada, e sempre em baixa”. Em terra nom há mais trabalho do que na indústria, e já nom há nem nesta. Nas Somozas, Fernando explica que “tudo está vazio” e nas Pontes, as pessoas “vivem das reformas”.
Além da indústria
Em face do declínio da indústria “tradicional” na área, a resposta política, sindical e da comunicaçom social dominante tem umha orientaçom clara: fai falta é mais indústria. Nesta visom há umha componente geracional, como explica Iolanda Teixeiro: “Em Ferrol houvo bastante riqueza e a classe operária estava na vanguarda, e com todo isso há umha espécie de nostalgia, de que nom vai mais voltar”. Para Iago Pérez, há um claro cambio de imaginário e umha fratura geracional: “Nom há essa bonança, nem esse trabalho que tinham as classes baixas e altas. E o pior nom é a perda da indústria, mas o facto de essa quebra geracional ter sido total na hora de transmitir conhecimentos”.
Para Fernando Iglesias, trabalhador durante anos na Gamesa e das auxiliares nos estaleiros, as indústrias chegadas nos últimos anos estavam obsoletas: “Nom vejo qualquer sentido a todo o sarilho à volta dos estaleiros de Ferrol ou das Pontes”. Explica Fernando que quando a Siemens absorveu a Gamesa, a empresa tornou-se obsoleta muito rápido: “Por exemplo, as pás dos eólicos continuam a crescer e aqui era impossível transportá-las polo tamanho que tinham; batiam nos postes e nas casas. Nom fazia sentido onde estava montada a área de produçom e como estas cousas, há muitas mais”.
Dada a destruiçom, importa perguntarmo-nos se esta indústria é a única opçom. Em maio, a Junta enviava ao governo estatal umha proposta para um Pacto por Ferrol no que se incluía a diversificaçom da Navantia para as renováveis, o aproveitamento da costa para eólica marinha ou a reabilitaçom da cidade velha em Ferrol. As respostas fôrom diversas: Ana Pontón considerou‑a umha fraude por nom constar dumha dotaçom económica e a CIG classificou‑a como “propaganda”. Para o PSOE, umha “carta aos Reis Magos” para a que pediam concreçom para reindustrializar a zona. Sempre com nuances, a reindustrializaçom é a constante que se repete em todos os argumentários.
As grandes empresas do saqueio escutam e atuam: em julho, a Reganosa e a portuguesa, com capital chinês, EDP, anunciavam umha proposta dum projeto que incluía umha pequena barragem e quatro grandes parques eólicos para a elaboraçom de hidrogénio. Também ligado a parques eólicos, a Endesa, a Naturgy e a Iberdrola apresentárom projetos ou manifestárom a intençom de construir centrais para este gás. Para além da corrida polo hidrogénio verde na comarca, a Endesa apresentou um projeto de macroeucaliptal que ocuparia 540 hectares, já pendente da avaliaçom ambiental da Junta. Quanto ao emprego, e a exemplo da proposta de Reganosa, prometem a criaçom de 7 mil empregos indiretos e 400 quando já estiver em operaçom. Segundo a Reganosa, a intençom da empresa é “converter Ferrolterra na capital da energia verde”, mesma linha argumental do resto das companhias. Claro, sempre sujeitas a financiamento europeu.
As grandes empresas do saqueio escuitam e atuam: em julho, a Reganosa e a portuguesa, com capital chinês, EDP, anunciavam umha proposta dum projeto que incluía umha pequena barragem e quatro grandes parques eólicos para a elaboraçom de hidrogénio
As empresas aproveitárom as circunstáncias e recorrêrom a fundos europeus em massa para a reconstruçom por causa da pandemia. O exemplo mais famoso de participaçom pública é o estabelecimento de umha empresa entre a Junta da Galiza (40%), Abanca (38%), Sogama (10%) e Reganosa (12%), para investir sob esta ideia de “economia verde e circular”. Para Iolanda Teixeiro, esta opçom, na teoria mais sustentável, nom muda nada: “Reconstruir para continuar a produzir do mesmo jeito”. Iago Pérez considera‑o “umha total perda de tempo”. A proposta do governo galego para os fundos europeus inclui 354 projetos (mais de umha centena deles, privados) e um investimento de 20 mil milhões de euros, que voltaria a destinar-se a grandes projetos.
Um olhar decrecentista
Iolanda Teixeiro fai parte da Rede Galega de Decrecemento e tem a certeza de que o futuro reside numha mudança radical de paradigma: “Defendemos a reduçom, ao contrário das outras esquerdas, como o BNG ou a maioria dos sectores sindicais. Eles nom o defendem porque nom se traduz em réditos eleitorais e ninguém gosta de dizer “se calhar nom vais poder trocar o carro a cada 5 anos, embora tenhas massa”. Isto também nom é viável para o planeta e leva à perda, por exemplo, de empregos na Citröen. As transnacionais dirigem tudo e estamos presas a isso até porque tudo foi construído à volta delas. Na Marinha, com o tema Alcoa, o discurso decrescentista pode nom ser popular; fai sentido”. Teixeiro recorda a complexidade do debate, que já tentara introduzir quando se apresentara com o partido ecofeminista LiGanDo nas eleiçons autárquicas em Ferrol: “O debate foi sempre dirigido pola comunicaçom social a apostar nuns estaleiros 4.0 (transformaçom digital no sector naval), dados de emprego, produtivismo, essa treta toda. E tudo de fora, nada que valorize o local”.
Iolanda Teixeiro: “Ferrol ainda está traumatizada, tudo caiu aqui e o estado nunca ajudou ou compensou em nada”
Fernando Iglesias também é membro da revista de informaçom Ollaparo, e explica que mália a situaçom crítica, nom estám a aparecer alternativas de nenhum tipo: “Falam de transiçom energética, mas o velho vai morrendo e nom aparece nada novo. Se ainda houvesse umha indústria de componentes como o caso dos eólicos, mas essas já estám a ir embora”. Fernando dá um exemplo: “O mundo para o que vamos requer umha indústria muito mais sustentável; se os eólicos fossem usados para alimentar umha quinta ou umha vila, seriam mais bem compreendidas do que esses macroprojetos sem sentido. A mesma empresa que fazia eólicos aqui, agora está em Portugal e envia esses componentes para os novos eólicos a partir de lá para aqui, é umha trapalhada”.
Fernando Iglesias, trabalhador: “No final, acabas por ver tudo cair e por te perguntar: o que fago agora? Acabas deprimido”
Também incidem na necessidade de repensar o naval. Teixeiro acredita que umha saída poderia ser a construçom civil: “Porque nom fazer barcos oceanográficos, de investigaçom ou de turismo sustentável? Nom podemos seguir com a teima da indústria militar”. Fernando acrescenta: “Um estaleiro civil pode fazer muito mais do que navios, e a curto prazo é necessário porque Ferrol precisa ter algumha cousa do que viver”. Para Iago Pérez, umha alternativa “bonita, mas difícil” é a recuperaçom da ria, embora “esteja complicado polas indústrias que há lá instaladas. Temos que pensar muito a longo prazo”.
Pensar no rural
As pessoas consultadas coincidem na necessidade de mudar as políticas em torno do rural, pensar nos sectores endógenos do país e olhar além dessa indústria: “nom fai qualquer sentido nom existirem medidas para travar a migraçom e assentar populaçom no rural”, explica Fernando, quem considera o turismo umha opçom que nom acaba de funcionar: “nesta zona dá para 3 meses e sem receitas o resto de ano, isto acaba por morrer”. Iolanda está comprometida com umha indústria local e sustentável, “com empregos que nom vam desaparecer amanhã”. Menciona, por exemplo, o “processamento de produtos orgânicos” e antecipa dous cenários para o momento inevitável de esgotamento da energia: “Ou redistribuímos e reduzimos, ou os fascistas vam dominar o mundo, como já está a acontecer”.
Iago Pérez: “O pior nom é a perda da indústria, mas o facto de essa quebra geracional ter sido total na hora de transmitir conhecimentos”
Essa reduçom implica também umha mudança de ambiçons vitais, como fijo Iago Pérez: “Depois da pandemia alguns de nós estamos a marchar para o campo, mas nom esperes viver como um marajá, antes, será umha cena austera em que vais ter as tuas batatas e outro tipo de vantagens que acabarám por compensar ires fazer a tua vida lá. Sem idealizar o campo, é umha alternativa mais sustentável ao longo do tempo”. Fernando partilha essa visom, e lembra-se de tempos em que estas alternativas que agora parecem modernas, eram o normal: “Antes ainda tínhamos autoabastecimento, galinheiros em casa, batatas e pesca a esgalha… trabalhavam as redeiras”. Agora tudo isso não existe mais”. Quanto ao futuro do trabalho, considera que devemos aproveitar a riqueza da terra: “A agricultura tem futuro, dá trabalho e temos umha zona produtiva muito grande. Ao nível das cooperativas agrícolas, por exemplo, ou no mar, o sistema pode ser alterado. Há cousas que podem ser melhoradas e que costumavam funcionar”.
Na história da vaca magrinha, a professora e o menino voltam um ano depois à quinta onde mataram o animal. A gentinha da casa nunca soubo quem a matou, mas ela reagiu a plantar verduras e legumes. Na história da vaca magrinha, a terra era tam fértil que as verduras até davam para vender, ganhar dinheiro e servir de exemplo para o resto da aldeia. Mas a história da vaca magra nunca aconteceu porque nom é nada mais do que um conto. E em Ferrolterra ainda há traumas a superar para poder ter um final feliz.