As irmás Fandinho Ricart som um referente na memória de Compostela, mas a sua dignificaçom foi um processo lento e complexo
Se procurarmos algumha personagem da Compostela do século XX que tenha sido canonizada polo imaginário coletivo, é provável que a figura dual das irmás Fandiño Ricart, imortalizada no passeio central da Alameda pola escultura de César Lombera, acuda aginha à nossa mente. E é que, com permisso do alcalde nacionalista e editor Ângelo Casal, assassinado em 1936, Maruxa e Corália representam a encarnaçom da história contemporânea de toda umha cidade, nomeadamente das suas classes populares e dos setores políticos que resultárom menos sucedidos na história recente.
Porém, as irmás da rua do Espírito Santo nem sempre desfrutárom do reconhecimento social que obtivérom algum tempo depois de desaparecerem fisicamente. A dia de hoje, ainda ficam na memória popular as burlas e aldrajes às que eram submetidas as Fandiño no seu dia-a-dia. O da restituiçom da sua memória foi um processo lento e gradual, e por vezes mesmo tortuoso e nom isento de obstáculos. Este artigo tratará de se deter, sequer dumha maneira sintética, nas principais estaçons desse longo caminho.
Alfonso Fandiño e ‘La Voz de Galicia’
A mais nova das Marias, Corália, morre em 1983, sendo soterrada no cemitério de Boisaca no 31 de janeiro daquele ano. Imediatamente depois do seu falecimento, o seu irmao Alfonso Fandiño aparece na delegaçom de La Voz em Compostela para se queixar do trato que a sua irmá recebe no obituário elaborado polo jornal corunhês. Deste episódio é testemunho Xosé Ramón Pousa, atual decano da faculdade de jornalismo da USC: “quando se deu a nova da morte, que redigiu José Luis Alvite, aos dous dias um irmao delas foi ao jornal para fazer umha série de precisons. Isso permitiu-me conhecer alguns pormenores que passaram despercebidos. A esse irmao delas, que vinhera da Corunha, eu figem-lhe umha entrevista e fijo-se um ato de retificaçom da informaçom. Eu tenho na memória essa pessoa, que era um anarquista compostelano que sofrera toda a repressom da pós-guerra e que acabara outra-volta na CNT, e que nos fijo umha série de precisons que eram desconhecidas para 90% da populaçom”.
Alfonso Fandiño queixa-se do tratamento informativo que La Voz dá às suas irmás, o qual hoje em dia poderia ser chamado de sensacionalista ou folclorista. A sua reivindicaçom do papel da história pós-bélica da sua família é o primeiro passo no processo de dignificaçom da memória das suas irmás.
As instituiçons, por trás da sociedade
Algo mais dumha década depois, diversos processos e acontecimentos históricos ‑entre os quais a capitalidade autonómica, o alargamento da universidade pública ou a eclosom do fenómeno jacobeu- tinham mudado a cidade até o ponto de a fazerem bem diferente daquela que conheceram as irmás Fandiño. É neste momento que determinadas pessoas (César Lombera, Encarna Otero, Farruco ou Rivadulla Corcón) começam a pôr em comum a sua preocupaçom pola reabilitaçom das figuras das Marias. Por palavras do escritor mugiám: “todo este processo foi levado a cabo pola sociedade civil, nunca polas autoridades. A ideia da estátua nom foi de Estévez nem da corporaçom, mas de César Lombera, a quem num primeiro momento o Concelho nom lhe aceita a ideia. Só o conseguiu depois de nove anos a insistir”.
Farruco, Magdalena e Torrente Ballester
Umha vez aceite a ideia da estátua, o humorista picheleiro Xosé Lois Bernal “Farruco” será o encarregado de convencer Magdalena, a única irmá das Fandiño que fica viva em meados da década de noventa. Segundo Bernal, o presidente da câmara municipal tinha medo dela devido ao seu forte caráter, polo que o próprio Farruco foi designado como mediador, dado que Magdalena tinha vivido na casa dos pais dele.
Apesar das reticências iniciais, acaba por aprovar o trabalho de César Lombera e a colocaçom da estátua, resultando bem sucedido o labor mediador de Bernal, nom sem fortes protestos polo esquecimento e as aldrajes a que Maruxa e Corália tinham sido submetidas previamente.
No entanto, e apesar da aprovaçom de Magdalena, o processo que iria culminar na colocaçom do grupo escultórico ainda encontrou novos obstáculos, nomeadamente o representado pola presença do escritor Gonzalo Torrente Ballester no evento institucional de inauguraçom.
A presença de Torrente, devido ao seu conhecido passado falangista, gerava controvérsia entre umha boa parte das pessoas vinculadas à reabilitaçom da memória das Marias, entre as quais a própria Magdalena. Mais umha vez, será Bernal quem terá que exercer como mediador no processo. Cumpre salientarmos que o facto de Magdalena acabar por transigir nom quer dizer, nem de longe, que lhe resultasse engraçada a presença de Torrente no ato. A sua inicial e rotunda oposiçom acaba por se tornar num sarcasmo de sabor entre azedo e amargo. Deixemos que seja o próprio Farruco quem nos conte o que aconteceu:
“Digo-lhe que à inauguraçom vam vir D. Antonio Fraguas e Torrente Ballester. De Fraguas, Magdalena nom tem queixa nenhumha, ao contrário. Porém, quando ouve o nome de Torrente, resposta enérgica: “Nego-me! Esse é um fascista!”. Torrente já estava de caminho para Compostela, e eu conseguim, a duras penas, convencer Magdalena. Fomos jantar ao Alameda o alcalde e a sua mulher, Lombera e a sua companheira, Torrente com a sua parelha, eu com a minha e Magdalena. Quando estávamos a jantar, eu observei que ela tinha os olhos muito vermelhos, e dixem-lhe de ir a um meu amigo que é oftalmólogo. E ela respondeu-me: “no, no es de la emoción, no. Es de estar tanto tiempo Cara al Sol, assinalando Torrente Ballester”.
A indignaçom de Magdalena é partilhada por outras pessoas envolvidas no processo, como Dionísio Pereira ou Encarna Otero, quem mesmo escreve um artigo de protesto. Lembrando aquele episódio, Otero manifesta que “em Compostela a reconciliaçom e os atos conjuntos nom serám possíveis até nom serem publicados os nomes dos carrascos”. No entanto, Torrente acabará por participar como “mantedor literário” do ato, no qual fala de Corália e Maruxa como “apariçons celestiais que de vez em quando nos vinham fazer algumha visita aos terrestres”.
O primeiro passo para umha nova memória?
Se bem a restituiçom histórica nom é desprezível, é verdade que o processo resultou, em linhas gerais, um tanto folclórico e descafeinado
Talvez nom seria errado pensar que o processo iniciado com a colocaçom da estátua das irmás Fandiño em 1994 e outras açons paralelas –tais como a ediçom no mesmo ano dum livro-coletánea coordenado polo próprio escultor Lombera- é o correlato a escala local daquele “abraço entre irmaos” em que cristalizam os consensos culturais da Transiçom. Se bem a restituiçom histórica nom é desprezível, é verdade que o processo resultou, em linhas gerais, um tanto folclórico e descafeinado. No entanto, e apesar de todo isto, as Marias já fam parte, por direito próprio, da monumentalidade contemporânea da cidade, exercendo como mascarom de proa do seu acervo simbólico e representando dalgumha maneira o conjunto das vencidas. Também no terreno da memória, os pequenos avanços podem representar apenas o primeiro passo no caminho de conquistas bem mais amplas.